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Publicado a: 19/04/2017

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[TEXTO] Rui Miguel Abreu

Todos os géneros possuem os seus faróis, as suas consciências. São projectos, grupos ou artistas que se assumem como os guardiões da verdade, aqueles que asseguram a identidade do território em que funcionam, mantendo e cultivando uma postura de não compromisso ao mesmo tempo que arriscam buscar na continuidade os pontos de intersecção com a modernidade, a invenção e até a revolução. Os Gang Starr de Premier e Guru fazem-no com o hip hop. Com um pé dentro da indústria e a cabeça firmemente apoiada nos princípios originais que serviram para definir as coordenadas daquilo que melhor sabem fazer. Chega a ser uma questão política. Uma questão de identidade e até – há que não ter medo destas palavras – de purismo. E é algo de extremamente necessário. O hip hop tem sido palco de convulsões extremas, gestos estéticos que o aproximam de realidades por vezes impensáveis. De um lado, o extremo calculismo comercial dos Ja Rules, Nellys e quejandos. Do outro, o desejo de perturbação que conduz ao namoro mais ou menos aberto da Cultura com géneros apoiados na ruptura, na reinvenção e na quebra de um continuum histórico. A facção comercial e a facção experimental, tão bem equacionadas no projecto recente de Mike Ladd, os Majesticons. E o fogo cruzado vindo de cada lado da barricada às vezes é tão intenso que a nossa atenção começa a ser monopolizada pelas margens não nos sendo permitido observar o que está no meio, o que é permanente.

Ouvindo The Ownerz, o último disco dos Gang Starr, tem-se a sensação de que aos Gang Starr pertence o próprio epicentro do hip hop, como se guardassem as tábuas da lei e as eternizassem em cada beat, em cada rima. Fazendo a comparação do hip hop com o cosmos, conclui-se que se a astrofísica nos garante que o universo está em expansão, dilatando-se a distância entre cada galáxia, então os Gang Starr guardam dentro da sua postura, sons e palavras o derradeiro efeito do Big Bang.

 



Primo e Guru não são uns tipos fáceis. Demoraram quatro anos a darem-nos Moment of Truth depois do grande Hard to Earn e, não contentes com isso, levaram outros tantos para surgirem com The Ownerz. Como se, de cada vez, esperassem pelo momento exacto para aparecerem e relembrarem a todos o que somos, de onde vimos e para onde vamos. Nas pausas dos Gang Starr, Premier teve tempo para se impor como um dos mais respeitados artífices do hip hop, levando os seus beats a carregarem uma distinta marca de qualidade onde forma, conteúdo, força, carisma, groove e boom parecem estar sempre em equilíbrio. Guru, por outro lado, afirmou-se, pela via dos projectos Jazzmatazz ou Baldhead Slick, como um MC de corpo inteiro, com palavras de alma e flow seguro aliados àquele drowl característico, só aparentemente monótono, de quem sabe sempre o que diz, como o diz e porque o diz.

De certa maneira, nada mudou e tudo mudou com The Ownerz. Temos Premier, que volta a surpreender com as mesmas matérias primas, entrando dentro do próprio espírito do beat para o renovar: em The Ownerz, o seu trabalho de programação é magnífico, havendo temas em que dispensa os hi hats – que sempre foram um factor de swing no hip hop – para os substituir por ruídos de vidros quebrados, metal percutido ou… nada. E Guru? Divide-se entre a rua – “in the streets deep…” –, os seus peeps, as observações de olho de falcão e o debate com o seu próprio cérebro para nos desenhar um mundo escuro, mas onde a luz também entra. Fala-se de amor e respeito, de irmandade e desilusão, de força e fragilidade, de hip hop.

E se “Skillz” é uma lição de moralidade, com um beat terrivelmente económico, mas eficaz, já “Nice Girl, Wrong Place”, com Boy Big no crooning do refrão, parece ser os Gang Starr a dizerem-nos que é fácil fazer hits, mas que muito mais difícil será expor a alma em palavras significantes sobre um beat que deixa o jazz escorrer para dentro da bateria, como acontece em “Deadly Habitz”. Todo o álbum é perfeito, não há uma molécula de som errada, nem uma sílaba atirada a despropósito. Tema após tema, os Gang Starr reafirmam a sua posição, bem no centro das coisas, perfeitamente sintonizados com o que se passa à sua volta, mas de pés bem fincados – monolíticos!

 


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Texto originalmente publicado na revista Dance Club.

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