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Publicado a: 02/03/2017

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[TEXTO] Diogo Pereira [FOTOS] Deck97 [ILUSTRAÇÃO] António Pinho

Mais de dez anos distam Caixa de Pandora, lançado em Dezembro, do último álbum a solo de Fuse, Sintoniza, lançado em 2003 (sem contar com a sua ode ao hip hop instrumental, Inspector Mórbido – Instrumentais, de 2004). A questão que se impõe é: será que ele mudou? Será o mesmo, passado todo este tempo?

Segundo as palavras do próprio, este é um “álbum duplo, com um vasto leque de produtores, talvez a obra mais importante da carreira de Fuse. Um disco intenso, vivido na primeira pessoa que reflecte maturidade numa vida vincada em cada frase. Em Caixa de Pandora, Fuse apresenta todo o seu espectro de cores enquanto artista e como pessoa, do mais sombrio ao mais luminoso.”

A faixa de abertura não deixa dúvidas: um drone sinistro, servindo de fundo a uma única nota de piano, tocada durante quase um minuto, introduz um coro satânico até finalmente surgir a clássica batida boom bap, assegurando ao ouvinte que está em território familiar. E não é por acaso que abre o álbum com os versos:

 


“Mais de uma década em hibernação/Brasão que arde como brasa não se apaga a escrita em defumação/ Pandora é o vórtice, o núcleo da minha criação”


De resto, todo o álbum está imbuído de um pensamento de retrospectiva, de reflexão sobre o passado, do que o levou até aqui, e o que ele aprendeu pelo caminho:

 


“Este é o retorno ao prefácio da minha formação/ Vejo a evolução que traz ao colo um mundo doente/ Observa o antropófago não grites e não chores/ Século XXI, abri o portal do horrorcore/ Informação ao Núcleo há quem o saiba de cor/ Quando escrevi o Psicofonia no Sintoniza/ Abri a porta do mundo dos mortos à poesia/ Inspector Mórbido sou uma arma de oração/ Há quem me veja como mestre há quem me chame Fusão”


Mas “continua aqui o mesmo”, independente (“A minha alma não caminha na vossa procissão”), astuto, apreensivo quanto ao futuro (“Vejo o oráculo nas árvores, a inquietação nas águas”).

Na verdade, Fuse não mudou. Não mudou as suas fórmulas, nem o seu estilo, nem a sua identidade, e nós agradecemos-lhe por isso.

 


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Todos os elementos que fizeram dele um dos mais reconhecidos e respeitados rappers nacionais estão presentes neste álbum: o amor ao cinema fantástico (há samples de Godzilla, Hellraiser e do famoso lullaby de Rosemary’s Baby, que fecha “Obsessão ou Lucidez”), o fascínio pelo paranormal, o oculto, a religião e a morte, os ritmos pesados e cavernosos, a estética horrorcore, as battle raps agressivas e intimidantes, o vocabulário esotérico, a destreza com a sua língua, a riqueza imagética da linguagem, o lado de consciência social, a introspecção meditativa, a nostalgia pelo passado, a visão negra e crítica do mundo (mundo que se prepara para acolher o seu filho) e de tudo o que o rodeia. Tudo isso está no ser humano complexo, interessante e carismático que é Nuno Teixeira.

Apenas amplificou o formato, refinou as fórmulas, limou as arestas com o saber de experiência adquirido. O que ouvimos aqui é o trabalho de um veterano, que sabe o que quer dizer e como o transmitir. Mas este é o Fuse de sempre, que nós conhecemos e adoramos, desde os tempos de Informação ao Núcleo.

O mistério ainda está lá a espicaçar o ouvinte, desde a faixa homónima que abre o primeiro disco.

Também há referências aos seus álbuns anteriores, desde os títulos das faixas (“Dor 10mg” é uma referência a “Dor 5mg” dos seus Instrumentais) até versos como “Poeta com caneta de aço”, uma referência a “Soldado Com Caneta De Aço”, de Sintoniza…, “Só sente quem atinge”, uma reiteração de “Perceptíveis aos mais sensíveis”, ao clássico “Homem bom ou homem mau o mal não está por fora/ A mente é o aloquete para a caixa de pandora” de “Neuroma”, do seu primeiro álbum, Informação ao Núcleo, que abre “Livra-me do Mal”. Até há espaço para o hip hop instrumental, com três beats (“Mercado Negro”, “Dor 10mg” e “A Visão”) a evocar os Instrumentais do Inspector Mórbido e os seus samples orientais. E há temáticas e músicas semelhantes, como hinos à poesia e à música (“Excalibur” e “Paixão Que Fulmina” fazem lembrar “Hinos Sem Destino” ou “Eterno No Teu Ouvido”).

E os epítetos são os mesmos: Inspetor Mórbido, Poeta com caneta de aço, Fusão em stereo, Antropófago.

 


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A sua escrita continua tão complexa, rica, visual e visceral como sempre foi, plena de força, dor, sentimento, rumo e significado. É notório o seu amor pelas metáforas (“A frustração é a feromona do ignorante”, “A mentira é filha da puta, viúva e também parteira”, “A natureza imutável do demónio é o orgulho”, “Poesia é a formalina onde fecho a morbidez”, “Mordomia é uma tortura confundida com protecção”, “A ignorância é um camaleão cúmplice no rapto do sol”, “O meu bairro debaixo de água é tão brilhante”) e comparações (“Vejo cromos no jogo, só vejo tonos em tronos / São como gunaria grávida atrás dos abonos”, “Arroto narrativa como magma…”), pelas imagens e personificações (“Danço no escuro com um morto-vivo amigo bipolar / Levo a lucidez passear à noite de carro funerário / Imagina o mundo ao contrário, eu vivo em baixo”), pelas repetições (“Não me canso do cansaço na montanha que escalo / Não ver o cume seria o cúmulo de não sentir o que falo”), pelos contrastes (“Mas o sucesso à pressão é retrocesso ao empurrão”, “Emojis, símbolos para quem fala sem emoção”, “A pauta que me afina quando a vida desafina”), pelas rimas internas.

O grande mérito da escrita de Fuse é ser, ao mesmo tempo, rica e despojada, poética mas despretensiosa, pesada e melíflua. Consegue estimular-nos o intelecto sem nos alienar. E pelo caminho, cunha novas expressões (“Dogmas hidráulicos”, “perímetro encefálico”, “gladiador metálico”, “Minotauro verbal”, “o escrivão da destruição”). E há aqui óptimos momentos de verdadeira força criativa e domínio da língua, sobretudo quando Fuse está em modo de battle rapper, como “Inspector Mórbido, insurrecto no ego lírico/ Poético licantropo injecto-te inferno no íntimo/ Criativo megalómano antropófago/ Comi o oitavo passageiro sou o nono no teu estômago”.

Que faz lembrar Autonómico abstémio, bloqueio académicos/ Antropófago, transformo fórmulas para génios/ Incrédulo no teu Deus chama-me ateu congénito/ Gravito como astros em cosmos encefálicos” ou “Decepo MCs, fatias finas, rima a rima/ A vossa linhagem não evolui desde a invenção da guilhotina/ Nano dróide com micro bisturis passeio nas tuas artérias/ A minha semântica é parque temático de horror tira umas férias” ou “Poeta encapuçado vocábulo envenenado/ Uma alucinação visual e acústica do diabo” que evoca “Antropófago, conservo rimas em sarcófagos/ Poeta lusófono, típico vernáculo”.

Também continua com vontade de subverter e brincar com chavões e o saber comum: “Não digo, tudo o que penso, penso em tudo o que digo/ Não posso perder o que não tenho, por isso não vivo pra ter/ A tua fé move montanhas/ A minha fé remove pessoas estranhas/ A luva branca quer esmola já não dá mais chapada”.

Musicalmente, também não há surpresas. Os mesmos sons do além (lembram-se da voz arrepiante de Lara Li que abria “Alquimia?”) habitam as canções do primeiro disco: a percussão pesada e áspera (e às vezes solene, como os tambores de marcha de “Excalibur”), os violinos funestos, os coros satânicos, os silêncios agoirentos, as odes às bandas sonoras de filmes de terror, os drones industriais, os pianos sinistros.

No segundo disco, os violinos fatais do horrorcore dão lugar a suaves linhas de baixo, riffs de guitarra e sopros solarengos do funk e refrões de neo-soul, num throwback ao rap alternativo da golden age dos anos 90.

 


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Em geral, a sonoridade é a mesma, embora o som pareça mais polido e encorpado. E, coros satânicos e drones ominosos à parte, é bastante acessível, desde os refrões às melodias, sobretudo no segundo disco. E há que destacar o uso de instrumentos verdadeiros (trompete, saxofone e piano) em três faixas, bem como um coro gospel, que atesta a ambição e o afinco depositados na feitura desta música.

Há um vasto leque de produtores (“de Portugal a Moçambique, Angola, Sérvia, até Nova Iorque”, como nos confidenciou numa entrevista recente), mas quem comanda o leme é Gustavo Carvalho, entrevistado aqui há pouco tempo, que assume os papéis da produção, gravação, mistura e masterização, e cria paisagens sonoras densas e ricas para suportar a escrita e a voz de Fuse.

Desta vez ficam de fora os seus habituais colaboradores D-Mars, Mundo, Sam The Kid e os internacionais Just Yves e Iman Iran, bem como o selo da Loop, editora dos seus três primeiros álbuns.

Aliás, Caixa de Pandora é um disco feito inteiramente sob o signo da independência, comercializado directamente pelo seu autor, que o vende no seu próprio website, a um preço justo, sem distribuição em lojas de discos ou terceiros.

O elenco de convidados é também revelador: Fuse convocou um colectivo de rappers hardcore do Norte de Portugal e de Moçambique para emprestar vigor e fúria às posse cuts do primeiro disco, e Allen Halloween para um dueto tingido de morbidez, maldade e desespero. Para o segundo disco, apostou numa cantora pop, num cantor neo-soul e num coro gospel.

 



Fãs de rap têm muito para “escavar” aqui. O storytelling também marca presença em “Salvador – O Perdão”, uma melodramática história do sofrimento de uma criança diferente, e “O Mágico”, o conto de um psicopata com uma missão: “Raptar os MCs chungas e levá-los no furgão”.

E, é claro, não podiam faltar os clássicos posse cuts: “Os 12 Magníficos”, com 11 rappers a desfilar os seus talentos em pequenas estrofes, e “Operação Underground”, com quatro rappers de Moçambique, onde Fuse demonstra, inequivocamente, que ainda é detentor dos mesmos dotes líricos que ouvimos em “Hemorragia Interna”, numa pura apoteose de liricismo.

 



Mas nem tudo é igual. Enquanto nos seus dois primeiros álbuns os seus alvos eram sobretudo a falsidade, a hipocrisia e a falta de talento dos que querem chegar ao topo por atalhos fáceis (que ainda se mantêm aqui, sobretudo em “Sangue Frio” – “Vocês não prestam atenção aos beats e bitaites, Rosas sem mota na corrida pelos likes” – e em “Revolucionários”, onde condena o anonimato cobarde das redes sociais), aqui o leque de experiências é alargado. Também ouvimos Fuse a falar sobre os desafios de viver em família (os seus dois filhos, Gaspar e Luana, cantam no álbum e muitas das letras foram inspiradas pelas palavras da sua mulher, Paula) e educar um filho especial. “Salvador – O Perdão” é um relato comovente e sentido dedicado às crianças diferentes, enquanto “Campos Sem Concentração” é uma diatribe contra os defeitos da nova geração sobre um loop de Michel Legrand.

Não estamos a ouvir um cínico ou um resignado, mas alguém que ousa albergar esperança no futuro sem perder a noção da verdadeira natureza humana.

 



Outra das novidades é o uso de interlúdios de spoken word, com Fuse a declamar breves poemas, como a meio de “Além do Mais” e “Contigo” e perto do fim de “Salvador – O Perdão” e “Inquebrável”.

Em conversa com este humilde crítico em Novembro, antes do pequeno mas bonito recital de poesia que nos ofereceu na Sociedade de Geografia de Lisboa, no Vodafone Mexefest, disse “Porque é que passei tanto tempo sem lançar um álbum? Por causa da bagagem…”.

Essa “bagagem” reflecte-se, sobretudo, no tempo que dá a discorrer sobre a vida em família (não a família musical, a “comitiva dealemática”, mas a sua nova família, a biológica), em especial o nascimento do seu filho, Gaspar, que o levam a escrever duas músicas emocionais e honestas, onde se debruça sobre o amor e os seus desafios, sem resvalar no sentimentalismo.

Fuse já não é um jovem, é um adulto. Pai, marido e um homem de família.

A paternidade talvez tenha refreado os seus ânimos, porque não há nada aqui de tão explicitamente violento como “Hemorragia Interna” (longe vão os saudosos tempos de chamar “filho da puta” ao ouvinte ao longo da música). Os fãs que gostavam desse lado mais grosseiro sentirão, certamente, a falta de algo boçal e desbocado como “Triplo X“, mas há versos de battle em que Fuse mostra que ainda tem os seus dotes líricos no sítio, como em “Operação Underground”, “Sangue Frio”, “Quinto Anjo” e “Revolucionário”.

Em entrevista ao Rimas e Batidas, em Janeiro, o rapper de Ramalde disse “Nunca imaginei lançar um disco de hip hop aos 40 anos”. Mas nós sempre acreditámos. Afinal foi ele que disse Continuo a sonhar alto que nem um puto”.

Também disse que o disco foi feito na altura mais negra da sua vida. E isso nota-se. Nuno atravessou um período difícil, em que acompanhou o seu filho na luta contra uma doença rara, mas venceu e descobriu o valor do amor e da perseverança. É por isso que este álbum é feito de dicotomias: o passado e o presente, a luz e as trevas, o ódio e o amor, a esperança e o desespero, a violência e a paz de espírito, o sofrimento e a felicidade.

A mitologia ajuda-nos a compreender esta Caixa. Pandora foi a primeira mulher criada por Zeus e enviada à Terra, onde abriu um jarro que continha todos os males da humanidade, deixando apenas a esperança para os mitigar. Fuse também passa boa parte da sua obra a denunciar os males da humanidade e do mundo moderno, mas volta sempre à caixa para se servir da esperança, um tema comum que permeia o álbum.

Caixa de Pandora é uma obra indubitavelmente ambiciosa (talvez o seu traço mais evidente): um monumento à sua visão. Fuse tinha muito para dizer, e saciou a sua sede num disco duplo de 32 faixas e duas horas e meia de duração. Não se trata de um álbum introdutório para quem ainda não o conhece.

A própria edição física foi desenhada e construída com afinco e atenção ao mais ínfimo detalhe, e está pejada de simbologia da morte e do oculto, desde o círculo mágico que adorna a capa, ladeado por um par de caveiras, envolto num fundo negro de pele de cobra, até às manchas Rorschach no final da tracklist na contracapa. Abrindo a capa e espreitando para o seu interior, somos confrontados por uma fotografia de Fuse, trajado a preto, de olhar sentencioso, numa sala semi-obscura de uma imaginada sociedade secreta de praticantes de magia negra, com as suas mãos pousadas em cima de uma mesa com uma caveira e um tabuleiro Ouija, convidando-nos a entrar neste mundo sinistro e único.

 


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O tradicional booklet (cuja capa tem inscrito o provérbio latino “Corvus Oculu Corvi Non Eruit”, “Um corvo não picará o olho de outro corvo”, talvez um apelo à união e amizade, talvez uma denúncia da hipocrisia e falsidade que Fuse tanto detesta) inclui ilustrações de António Pinho, Mariana Patacas e Augusto Peixoto, com o design e fotografia a cargo de Deck97, habitual colaborador dos Dealema. As imagens, tal como as letras e a música, apostam numa estética de morbidez e surrealismo, com caveiras boquiabertas, corpos desmembrados, anjos alados, minotauros de bocas ensanguentadas e três olhos, coroas de chifres, umbigos transformados em aloquetes.

Esta é a prenda para os seus fãs de longa data, a recompensa para os fiéis seguidores que tanto aguardaram o seu regresso, sem nunca acreditar que ele tivesse partido de vez. Na verdade, Fuse nunca esteve ausente: participou em todos os álbuns dos Dealema e desdobrou-se em colaborações com inúmeros projectos musicais.

 


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Porquê a divisão em dois discos? Simplificando, diríamos apenas: a luz e as trevas.

O primeiro disco é o mais negro: contém as faixas mais pesadas, as sonoridades mais densas, e liricamente, preocupa-se com a morte e a desolação, embora haja músicas de redenção e esperança (destaque para o já mencionado “Salvador – O Perdão” e “Exército do Eu”, um apelo a encontrar alento nos momentos mais difíceis, que abre com o discurso motivacional anti-medo de Will Smith no filme After Earth).

 



O corte mais negro é porventura “Obsessão ou Lucidez”, dueto com Allen Halloween, uma história de tumulto interior sobre a incapacidade de curar os vícios e levar uma vida melhor, ancorada num riff industrial da mão de Danny Lohner, não pelos coros satânicos mas pela amargura e imagética das letras.

O segundo é o mais luminoso, radiando de baladas e sensibilidade.

É sem dúvida mais leve (mas nunca leviano), com os convidados Dino D’Santiago a dar toques de r&b e neo-soul, o coro de gospel espanhol V-Go Negro Son a imprimir assombro às vozes, e Mafalda Veiga a contribuir com um refrão para aquela que é provavelmente a faixa de som mais comercial (“Ímpar Singular”). Há de facto, neste disco, músicas que poderiam passar nas rádios (se as rádios passassem músicas positivas com boas letras…), mas Fuse não diluiu o seu som, apenas experimentou novas cores, novas tonalidades.

Nunca o ouvimos tão positivo como em “Crisálida” (“A máquina que move a vida é o sentimento”). A sua própria voz é mais melíflua e os ritmos mais lentos. Por momentos, até pensamos que estamos a ouvir Sam The Kid em vez do Inspector Mórbido.

 



A luz, que apareceu em discos anteriores em “Mais Um Dia”, “Saber É Renascer”, “Prémio Nobel”, “Hinos Sem Destino”, “Eterno No Teu Ouvido”, “Tudo O Que Tenho Em Mim” e “Bons Velhos Tempos”, tem agora direito a um disco inteiro, feito de hinos ao sonho e à esperança (“Sonha, Inquebrável”), à beleza, à natureza (“Deusa Gaia”), ao crescimento (“Gelo”, “Olhos nos Olhos”), à individualidade (“Ímpar Singular”), à nostalgia (“A Carta”) e à alegria de viver (“Crisálida”). E é claro, não podia faltar a canção de amor, num disco que é também sobre família (“Contigo”). E no entanto, todas as faixas estão tingidas de uma certa melancolia, de um sabor amargo, fruto da experiência de vida de um adulto.

O segundo disco abre com “Caixa de Vento”, um poema doce, terno e comovente que se desenrola em torno das cores enquanto símbolos das memórias, dos afectos, da família e da passagem do tempo, que começa pelas palavras inocentes de uma criança (será o filho?), embaladas pela melodia simples e pueril que emana de uma caixa de música, à qual se juntam violinos em staccato e as vozes de adultos.

Deus Gaya, com a participação do coro V-Go Negro Son, liderado pela cantora de soul Wöyza, tem um sabor africano, no refrão e nos ritmos.

 



“Paixão Que Fulmina” é uma celebração ecléctica do amor à música, cujo beat de sopros orquestrais de soul lembra 9th Wonder, e que evoca explicitamente os seus versos em “Talento Clandestino”, de Dealema:

 


“Do hip hop à clássica, do soul ao ragga/ Dos 60 aos 80 ou cubana, ou Frank Sinatra/ Da Bossa Nova ao fado, ao cinema fantástico/ Diamanda Galas, adoro metal pesado

(…)

A felicidade é como uma batida/ Quando acaba sentes que há algo que falta na tua vida”


“Ímpar Singular”, uma colaboração com Mafalda Veiga, usa um loop de guitarra acústica por cima de um clássico break de Dalton & Dubarri para um interessante jogo entre um refrão que acusa uma sensibilidade mais pop e letras de sabor agridoce.

Completando a gama das emoções, também há espaço para humor, no divertido “Verde Amor”, um relato dos encontros com os vários pretendentes à sua filha, em cima do refrão de “Green-Eyed Love”, de Mayer Hawthorne, a fazer lembrar 88-Keys, com muitas punchlines à mistura (Desbloquearam-te o cagueiro a todas as redes?”, “Sabe programar em C mas nunca abriu um soutien”).

O segundo disco também tem um toque de bom gosto que o ouvinte atento agradece: a inclusão de pequenos instrumentais de soul-funk no final de três faixas (“Crisálida”, “Paixão Que Fulmina” e “Verde Amor”), a fazer lembrar Pete Rock & CL Smooth no The Main Ingredient.

 



O álbum fecha com “Gaspar”, talvez o momento mais comovente, um relato do difícil nascimento do seu filho, com Dino D’Santiago a cantar o refrão em cima de uma delicada melodia de piano e caixa de música, e “Inquebrável”, uma ode à resiliência e abnegação da vida de sacrifício de uma mulher, que termina com uma passagem bíblica de amor incondicional.

Não é por acaso que Caixa de Pandora termina nesta nota positiva: é esta a mensagem que Fuse nos quer deixar, mais do que qualquer outra.

Tal como os seus dois antecessores, Caixa de Pandora não é apenas um disco horrorcore, ou de rap alternativo ou hardcore, como também não o eram Informação ao Núcleo e Sintoniza. Não tem um único tom, mas reúne vários em si.

O único defeito a apontar é, porventura, o do excesso de familiaridade para quem procura algo de novo. E a redundância temática nalgumas faixas, o que fazem com que por vezes o álbum se repita e insista sobre si mesmo. Mas, como já foi dito, este é um disco para clientes habituais.

Talvez este tenha sido o disco que Fuse sempre quis fazer. O disco de amadurecimento. Uma síntese dos seus três primeiros álbuns e de todas as suas influências. A obra que consolida o seu estatuto, e congrega em si todos os seus traços artísticos: a agressividade crua dos seus tempos underground (embora desta vez com menos violência), a sua sensibilidade introvertida, a sua voz crítica e consciente, o amor à língua portuguesa, à escrita pela escrita e à poesia, o imaginário da morte e do oculto, a paixão pelo cinema de terror, a sonoridade horrorcore, o liricismo esotérico e visceral.

Talvez não venha a alcançar o estatuto de clássico dos seus dois primeiros álbuns, mas é incontestavelmente um regresso à forma de um dos melhores emcees portugueses. Os fãs de longa data talvez levem a mal o seu lado mais íntimo e luminoso, mas qual deles foi pai, viveu o que ele viveu, sentiu na pele o que o artista sentiu?

 


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