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Publicado a: 03/12/2017

Fuse – 22 anos de rap no Hard Club: Passar o testemunho

Publicado a: 03/12/2017

[TEXTO] Diogo Pereira [FOTOS] Rafaela Ramos

Num Porto cheio de turistas, um jantar de tapas na companhia de um coreano não podia ter fornecido melhor contraste para me juntar à legião de centenas de fãs (sobretudo nortenhos) de rap português que veio receber (ou melhor, aclamar) Fuse, um dos mais celebrados rappers portugueses, na comemoração dos seus vinte e dois anos de carreira ontem à noite no Hard Club, espaço esse também de contrastes: enquanto na sala principal se ouvia hip hop português militante, na sala ao lado decorria um concerto de heavy metal (e mais tarde, um set de jungle agressivo) e ainda se podia ver num espaço aberto uma pequena feira de caridade social.

Noite de lua e casa cheia para receber o histórico rapper e produtor de Ramalde, num concerto especial que foi não apenas uma viagem pela obra do Inspector Mórbido mas que também serviu de plataforma de exposição a inúmeros novos valores do rap português, oriundos de todas as zonas do país (com especial ênfase no Norte, como seria de esperar).

Os azulejos vermelho-sangue que ornam as paredes da mítica sala de concertos portuense forneceram uma perfeita metáfora visual ao tom, atitude e teor lírico dos emcees em palco: masculinos, beligerantes, apaixonados.

O modelo da noite foi simples: cada projecto teve à volta de 10 minutos para apresentar entre uma a três faixas. A maior parte dos intervenientes não saiu do modo battle rapper e do orgulho masculino e agressivo que lhe é inerente, apostando em músicas subordinadas aos mesmos temas: quase todos os emcees cantaram sobre honra, amizade, perseverança, amor à sua arte e à sua língua.

E quanto à sonoridade, não saiu do boom bap mais underground, sem cedências ao trap e a batidas mais comerciais.

Em muitos aspectos foi um típico concerto de rap, com alguns dos seus lugares comuns: todos a suar visivelmente debaixo dos seus capuzes de Inverno, todos a ocupar o palco mesmo quando não estavam a actuar, rodeando a mesa principal em tão grande número que esta mais parecia uma mesa de buffet que uma mesa de mistura, todos a promover o seu peixe no início e no final de cada actuação.

É difícil partilhar o palco com um colosso como Fuse, mas todos os grupos ficaram à altura do desafio.

Todos os emcees souberam estar em palco, com presença, postura e atitude, interagindo constantemente com o público, dominando manifestamente todas as modalidades do crowd work, desde o habitual “Façam barulho!” até à tradicional chamada e resposta.

Majestic TK começou a noite com muita atitude definindo o tom agressivo da noite, com dicas de battle a condizer (“Quero ver-te bater as botas mas eu só calço ténis”), e terminando com uma história de pobreza e amargura muito sentida (“Não digas que é a vida, nós nunca arranjámos desculpas/Olha-me nos olhos e diz-me de quem é a culpa”).

Seguiu-se Grandson (que convidou Inztynto para se juntar a ele em palco) com a sua dicção à velocidade da luz, os seus frequentes rugidos de leão e um momento de sátira a “emcees de Facebook” sob fundo de sopros de funk.

Tempo para ouvirmos UEEST e o primeiro número mais r&b, com direito a refrão de Denise, e letras a incentivar o bom e velho ditame epicurista carpe diem, tudo isto seguido de uma faixa de sátira social intitulada simplesmente “Portugal”, a abrir com o infame tropeção de José Sócrates, e uma batida a fazer lembrar um instrumental de DOOM.

Entrou o quarteto Beat The System Crew com baixos de fazer tremer o chão e batidas pesadas à Naughty By Nature ou o clássico “Outta Here” de KRS-One. Dos momentos de maior energia da noite, com os quatro rappers aos pulos em palco.

Quem também não abrandou o ritmo foi o mestre de cerimónias de serviço, João Henrique, que manteve a energia sempre em cima, em pequenos interlúdios ao longo do concerto.

Seguiram-se os Nexus. Palmas para a cultura de um grupo cujo membro entra em palco com uma t-shirt de Basquiat e que emprega loops de koto nas suas batidas. E trouxeram com eles um convidado muito especial, o guitarrista Rui Farinha, para um número acústico, uma canção de amor que contrastou com a violência preponderante da noite.

LóJico entrou ao som de muitos aplausos do público feminino, ansioso por ouvir as suas músicas de desgosto amoroso, bem como um dos versos mais engraçados da noite: “A tua relação é XL ela só diz larga”, e as batidas mais próximas do dubstep.

Os Zona Norte ofereceram-nos uma sonoridade lo-fi muito característica a evocar as primeiras faixas de Red Eyes Gang. Uma dupla cheia de carisma, e um impressionante acapella no final: “Hip hop é alma, hip hop é fogo”, bramavam aos céus.

Tempo para ouvirmos a actuação surpresa de CADI e os seus Pirataria depois de um pequeno problema técnico. Muito humor com letras de battle (“Não és gangsta és um borra botas”) em cima de uma canção infantil de pitch acelerada a hélio. CADI ainda nos ofereceu uma breve história de todos os nomes estilo Hall of Fame de Valete, e brindou-nos com um uso muito original da banda sonora de Sozinho Em Casa.

Ficámos depois na companhia dos Base Off 547, de Guimarães, e os Bloco Verbal, com muitas dicas de battle, incluindo as mui divertidas “Só ouve isto quem tem paca porque eu não falo barato” e “Na escrita é só Antónios mas não há um Lobo Antunes”.

Full Kalash brindou-nos com um hino à sua mãe, vítima de cancro, num dos momentos mais emocionantes da noite.

Depois, Equilíbrio entrou em cena acompanhado de DJ Slice e João Pinheiro com a única presença feminina da noite, num momento que pôs toda a gente de luzes no ar, seguido de um número de storytelling a fazer lembrar “Tá-se Mal” dos Mind da Gap. E terminaram com um dos refrões mais memoráveis da noite: “Eu estou de volta a casa, à casa do rap, por isso paga-me em cheque”.

Fugitivo, de Angra do Heroísmo, representou os Açores sem sotaque, mas com muita energia. “Eles querem-me morto”, bramava, com tom de quem enfrenta sem medo ameaças de morte.

Riça, com uma dicção e flow imparáveis, e o seu convidado Kass, abriram o seu set com sentido de humor, fingindo que se iam embora depois de um simples acapella. “Eu imito os deuses sempre com postura de ateu” disse o rapper de Paredes com graça.

Os Sentido Único, de Leça da Palmeira, partiram o palco com uma imensa confiança e atiraram CDs ao público em jeito de despedida.

Seguiram-se os BaddaB com t-shirts pretas a condizer e uma intensidade tal que podíamos discernir veias a sair do pescoço de um deles. E uma energia de grupo muito bem coordenada (numa ode aos clássicos grupos de hip hop como Run DMC) que aproveitou bem as capacidades vocais de cada membro, ora individualmente ora em coro, com uma mensagem muito clara a passar: “o hip hop não está morto”. Como de resto se provou esta noite.

Depois de “Nem Mais Um Minuto”, momento de intervenção social de Org13, que actuou na companhia de Elo e Kog, entraram os Rockitmusic com um loop de órgão sinistro a servir de cama a versos de batalha anti-wack rappers enquanto os músicos em palco atiravam CDs ao público como o vilão de Goldfinger atirava o seu chapéu-lâmina.

O hype man J. Henrique tomou outra vez conta do palco, e pediu isqueiros e telemóveis no ar por 22 anos de carreira do protagonista da noite.

Acompanhado, como habitualmente, por DJ Flip nos pratos, Fuse entrou ao som de um sample sinistro de música indiana e abriu o set com um clássico do horrorcore, bem ao seu estilo: “Verdade ou Consequência”, de Dealema. “Sejam bem-vindos senhoras e senhores ao teatro dos horrores”, toda a gente cantou.

“Esta noite não é só sobre mim”, afirmou, explanando as suas nobres e altruístas intenções que estiveram na base da organização deste evento. O rapper e produtor não escondeu o amor à sua terra natal, e mal disse, pronunciando-se em relação ao estado do rap português actual, “Tenho saudades de ouvir o sotaque do Norte”, eis que a multidão irrompe toda clamando “PORTO! PORTO! PORTO!”. Ou a capital do hip hop, como lhe chamou.

Após esta breve introdução voltámos na máquina do tempo a 2003 e Sintoniza… com “Psicofonia”. “Lembrem-se disto, nasci depois de Cristo” – não havia ninguém na sala que não se lembrasse destes versos.

Mas Fuse voltou ainda mais atrás no tempo para Informação Ao Núcleo e os clássicos “Anikilação – Adversários” e “Vocês Andam Aí”, com todos os rappers atrás do palco, em fila, estilo A Última Ceia, a assistir ao mestre.

Voltámos a Sintoniza… e aos clássicos de energia positiva “Prémio Nobel”, “Mais um Dia”, “Eterno No Teu Ouvido” e “A Outra Face”, ao lado de “Juntos Como Um Só”, a mostrar que nem só de horrorcore se faz um artista de rap.

E continuámos em modo de nostalgia com “Bons Velhos Tempos”, numa noite com os pés bem firmes no passado e olhos postos no futuro.

Afinal, o próprio disse que esta seria “uma viagem intensa e construtiva desde a primeira cassete gravada até ao mais recente disco”, e “uma visita guiada por todos os discos”, e não desiludiu, cantando uma mescla de clássicos desde os primórdios de Informação ao Núcleo até Caixa de Pandora e aos álbuns de Dealema.

Altura de receber o convidado surpresa, Relax, mas ainda houve tempo de cantar os parabéns ao artista, com direito a bolo de chocolate com duas velas, cortesia da mulher e da filha que entraram no palco e o abraçaram apaixonadamente. A prova derradeira, se tal fosse preciso, que em vinte e dois anos Fuse encontrou não apenas sucesso profissional mas amor genuíno.

Findo este momento de afecto que apanhou Fuse verdadeiramente desprevenido, eis que entra Relax, cheio do seu carisma e swag habituais, a alcançar o equilíbrio perfeito entre o atrevimento nortenho, o humor picante e o talento lírico. Em plena maré promocional do seu novo disco, O Baptista, cantou os singles “Limpinho”, “Capoeiro” e “Faroeste” com muita gente a acompanhar os versos.

Ainda em Barcelos, continuámos com Mace, conterrâneo de Relax, com um dos refrões mais catchy da noite: “Mas Porque É Que Tu Não Mudas?”.

Seguiu-se o fado-rap de Delay, que cantou, em tom plangente e autodepreciativo, “Eu não sou nada, não sou ninguém, sou a pedra da calçada pisada”.

Destaques da segunda parte da noite incluíram os Omega Krew, que nos ofereceram histórias das ruas e da sobrevivência do mais forte, à Mobb Deep, a paranóia de Inztynto e a metralhadora verbal de Briga.

Quanto a Fuse, se a sua primeira parte foi consagrada ao passado e à nostalgia, a segunda foi dedicada à esperança e à luz, e a quem aguentou até ao fim: incluiu vários sons de Dealema, como “A Fonte”, “Família Malícia”, “Sala 101” e “Nada Dura Para Sempre”.

De facto, só os resistentes ficaram e foram eles que cantaram o refrão de “Escola dos 90” palavra por palavra.

Fuse fechou a noite (e o proverbial tasco) com “Provavelmente” e uma mensagem muito especial que deixou a todos os presentes: “Não esqueçam esta noite e nenhum dos artistas que atuaram aqui”. E despediu-se cumprindo uma promessa: atirou o seu casaco verde-tropa do V Império para um sortudo na primeira fila.

Há duas músicas de Fuse fundamentais para compreender esta noite: “Prémio Nobel” e “A Outra Face”.

Na primeira, começa por dizer-nos: “Esta música é dedicada a todas aquelas pessoas, que nunca tiveram reconhecimento na vida, este é o prémio que vos ofereço…”.

E tal como dedicou essa música a esses unsung heroes, também dedicou esta noite, por extensão, a oferecer o tal reconhecimento de que falava a quem não o poderia ter alcançado de outra forma. Esta noite foi o Prémio Nobel de Fuse aos rappers desconhecidos, que labutam no underground do qual ele já fez parte um dia.

Ainda sublinha e cita “O aplauso morre, os prémios envelhecem/E os acontecimentos são esquecidos”. Mas esta noite jamais será esquecida pelo seu pioneirismo e pela importância que teve em juntar tantos músicos e tanta gente para os ouvir.

Mais à frente, canta “Aqueles que realmente triunfam não são os que têm credenciais, são os que realmente se importam”.

De facto, nesta noite (que oferece uma resposta à questão “Quantas mentes brilhantes no anonimato, quantas mentes falsas no estrelato?”) ninguém tinha credenciais. Mas cada um dos artistas em palco importa-se com a sua arte, e leva muito a sério aquilo que faz.

E ainda diz “Um minuto de atenção pode mudar um destino”. Esperemos que a atenção dada a tantos destes projetos acabe, efectivamente, por mudar os seus destinos.

Aliás, toda a canção está repleta de mensagens que explicam bem o que se passou esta noite, e que em retrospectiva parecem imbuídas de um carácter premonitório: “À nova geração na frente da batalha/Na reivindicação pelo direito à palavra”, “A toda a classe construtiva e produtiva/O país é a máquina e vocês a energia”, “Ser incógnito não é um problema/Ter orgulho é a vacina às cicatrizes da indiferença”, “Os reais prémios vêm com o anoitecer/E cintilam mediante o reflexo do teu valor…”.

Os versos de “A Outra Face” também são importantes para compreender o que se passou ontem no Hard Club:

“O movimento cresce a par e passo/Mas navegamos num rio que está manchado/De um lado a incompreensão é o adversário/Do outro aqueles que vestem a camisola ao contrário”

Palavras proferidas em 2003, mas que ainda fazem todo o sentido agora. Ao convidar artistas novos, o rapper está a ajudar o movimento a crescer, a combater a incompreensão e a limpar o rio que o transporta.

“Há muitos grupos, muitos projectos

Mas a humildade ainda é pouca no trajecto”

Fuse não só não insuflou os egos de nenhum dos presentes, como encheu de humildade quem atuou na presença de um vulto de tamanha estatura e importância no movimento.

“No fundo sinto medo e desgosto ao mesmo tempo/Porque o sentimento da velha escola se evapora com o tempo”

Fuse resgatou esta noite esse velho sentimento, e ao fazê-lo, não está a deixá-lo morrer.

E, é claro, o refrão, repto a todos os que se queiram filiar no movimento:

“Há muito para compreender, para descobrir

Cultura pura, será que a sabes sentir?

Não é uma mera imagem, é um símbolo

Sentimento em bruto à espera do teu fruto”

Fuse comemorou 22 anos de carreira passando o testemunho de um movimento que se renova constantemente graças a eventos como este. Como em qualquer concerto de hip hop que se preze, “Façam barulho” foi o mote de uma noite especial, não apenas para ele mas para os 35 grupos que certamente não teriam tido oportunidade de pisar o palco do Hard Club não fosse graças a esta iniciativa. O rapper e produtor de Ramalde fez um gesto de louvar a qualquer veterano: cedeu lugar aos novatos, num cartaz inteiramente escolhido por si.

Fuse sabe bem o que é começar sem meios (o próprio confessou-me, no backstage, que quando estava a começar ninguém fez isto por ele), e usou essa empatia para ajudar quem precisa, provando esta noite que permanece, e permanecerá, eterno nos nossos ouvidos, em espírito e voz.

Esta foi uma noite única e memorável, vivida sob o signo da solidariedade intergeracional e do amor à arte, que provou que o hip hop tuga está vivo e recomenda-se, e a sua linhagem assegurada.

 


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