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Publicado a: 04/12/2016

O feitiço irrepreensível de Halloween no Titanic Sur Mer

Publicado a: 04/12/2016

[TEXTO] Manuel Rodrigues [FOTO] Direitos Reservados

 

“Shimmy Shimmy Ya” é uma das músicas que integra o warm-up que antecede a entrada de Allen Halloween em palco. O refrão (“baby i like it raw”) cantado pelo falecido Ol’ Dirty Bastard faz-se ouvir bem alto, do topo da bancada de X-Acto, e vai ao encontro do perfil do anfitrião da noite. Cru, sem papas na língua, um verdadeiro embaixador do gueto em pleno coração da babilónia. As palavras de Allen Halloween nunca conheceram filtro e tão pouco são calculadas de modo a soarem bonitas nos nossos auscultadores, quais contos de fadas coloridos e com final feliz. Nas histórias de Halloween, as personagens oscilam como as marés, e, por vezes, acabam mesmo a bater no fundo, tal e qual o navio que dá nome ao espaço onde nos encontramos hoje, sem salvação possível. Perdoem-nos a sinceridade, mas esta é a realidade do quotidiano da pessoa que se prepara para tomar de assalto o Sm58 que podemos contemplar em palco.

O concerto inicia-se com “Drunfos”, single de A Árvore Kriminal que prontamente incendeia a plateia, cheia, sedenta das rimas de uma bruxa de capuz que vagueia em palco como quem se passeia pelos becos e ruelas do seu bairro. Há toda uma mística cativante em torno de Halloween que é impossível ignorar: começando na firmeza com que debita metáforas e outras tantas figuras de estilo ao microfone, passando pelo olhar fixo na plateia, como quem quer puxar alguém para fora da multidão para lhe falar ao ouvido, e acabando no gesticular quase hipnótico que se aproxima de um ritual de feitiçaria. Tudo faz sentido e tudo casa na perfeição com esta espécie de macumba. Se até agora as dores de costas ainda não passaram é porque estão a fazer algo de errado. Este exercício de Halloween visa separar a mente do corpo e transportá-la para perto das alegorias que partilha, como acontece em “Zé Maluco” – “há um trilho no vale que vai dar a dois caminhos”, e nós estamos a percorrê-lo neste preciso momento. Atchim!!

Segue-se “Rap de Rua” e uma menção ao facto de qualquer pessoa hoje em dia ter acesso ao rap e poder praticá-lo. De facto, dados os acontecimentos dos últimos três dias (Sam The Kid e DJ Big no Ginjal Terrasse, Capicua no CCB, Luaty Beirão no Musicbox e Halloween no Titanic Sur Mer) é legítimo afirmar que o hip hop português já chegou a todos os cantos da capital, das salas mais pequenas e underground a espaços emblemáticos e de culto. Um promotor que não entenda esta omnipresença não está a precisar de um par de ouvidos, mas sim de uma consulta de oftalmologia. É que a realidade está, neste momento, a um palmo de distância, e a leitura do público que neste momento nos rodeia, aqui no Titanic Sur Mer, é a prova viva de que o hip hop já há muito ultrapassou as fronteiras do bairro. Muitos dos que aqui estão hoje vão sair do concerto e partir de comboio em direcção a realidades bem distintas daquelas aqui retratadas. Quando um rapper como Halloween nos diz que actualmente “até os doutores podem fazer rap” é precisamente a isto que se refere. A este novo padrão.

“SOS Mundo” é, muito provavelmente, a música mais intemporal de Halloween. Foi escrita há dez anos atrás, mas podia ter sido escrita ontem, hoje, amanhã, ou daqui a dez anos. A letra, cantada em uníssono pelos presentes, em muito se aproxima do paradigma actual do mundo. “Pânico geral, violência policial” pode muito bem encaixar-se nos episódios de racismo que nos chegam dos Estados Unidos; “terrorismo ameaça refugiados na estrada” pode servir de retrato a uma das maiores crises que a Europa neste momento atravessa; “nós somos os parasitas que a natureza não controla” pode ir ao encontro das feridas irremediáveis que vamos deixando no nosso próprio planeta. O ideal seria sentir que esta música está datada, mas, para mal dos nossos pecados, enquanto animal contaminado pela ganância e ânsia de poder, está mais actual que nunca. O planeta apela pela nossa ajuda e nós, como se nada fosse, encolhemos os ombros. É a isto que se resume esta incrível música.

História atrás de história, palavra atrás de palavra, Halloween vai cumprindo a sua missão. “Mr Bullying” marca um regresso aos tempos de escola e da tortura psicológica que é este tipo de perseguição, ao ponto de levar as vítimas ao desespero. “Mary Bu” propõe nova visita a Projecto Mary Witch, com o público a mostrar que ainda tem na ponta da língua todas as passagens da letra. “Bandido Velho”, tema que abre Híbrido é das mais bem recebidas – a par de “Fly Nigga” e “Youth” sabiamente guardadas para a reta final do concerto. Infelizmente, não foi possível ouvir “Bandido Velho” na versão Unplugueto que o rapper publicou na sua página oficial – horas antes do concerto -, aguçando a curiosidade de a ouvir ao vivo, só voz e guitarra. Ficará certamente para outras núpcias.

Allen Halloween tem uma capacidade incrível de escrever histórias, mas é na forma como as conta que está um dos seus maiores segredos. A voz arrastada e a sua dicção peculiar conseguem magnetizar uma audiência por completo. O resultado está à vista: caras sérias, compenetradas, a reflectir sobre a vida, cigarros acesos num acto de meditação profunda, qual incenso para a alma, e uma multidão em adoração quase profética. O concerto acaba e é como se alguém estalasse os dedos para o regresso à realidade. À saída, há quem não tenha dúvidas: “para mim, Halloween é o melhor rapper português”. Correcção: Halloween é um dos artistas mais interessantes em Portugal, não só por ser a voz daqueles que ninguém quer ouvir, a facção da sociedade que muitos ainda insistem em colocar à beira do prato, mas também pelo seu cariz transversal, que já o levou a pisar palcos de rock e metal, e que, actualmente, se prepara para despir músicas num álbum acústico. Grande!

 


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