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Publicado a: 17/10/2016

Eminem: Ao vivo e a cores!

Publicado a: 17/10/2016

[TEXTO] Rui Miguel Abreu [FOTO] Direitos Reservados

(Mais um texto do arquivo de Rui Miguel Abreu sobre Encore, álbum lançado em 2004 por Eminem, para celebrar o 44º aniversário de um rapper frequentemente escolhido como GOAT pelos fãs de hip hop. Parabéns, Eminem!)

Não comparem Eminem com Jay-Z, Nas ou Busta Rhymes. Eminem tem que ser mencionado no mesmo contexto de gente como Bob Dylan, ou Johnny Lydon, Elvis Presley ou Glenn Miller. Não por causa da música, mas por causa do impacto político social dos dois primeiros e ainda por causa da cor de pele dos dois últimos.

Encore, o novo álbum de Eminem, sucessor de The Eminem Show, candidato à mesma condição multi-platinada dos títulos anteriores da sua discografia, é um álbum que contém muito mais do que música e cujos grandes sentidos poderão ser encontrados não nas 20 faixas do seu alinhamento, mas nos silêncios que as separam! Eminem é bem maior do que o que os seus videoclips deixam entender, bem maior do que o corredor onde pendura todos os seus discos de platina, bem maior do que todas as hipérboles que se usam para o descrever. Eminem é bem maior do que será possível explicar.

 

 


 

[O MUNDO AO CONTRÁRIO]

Numa revista online, o crítico James Corne escrevia que o mundo deve estar louco já que “o melhor golfer é negro, o jogador mais alto da NBA é asiático e o maior rapper do mundo é branco!” Eminem é mais uma prova de que o status quo, nomeadamente no que às convenções de cor e raça diz respeito, se alterou. Ele é um músico branco que surge permanentemente rodeado de músicos e produtores negros, como se o seu tom de pele fosse um acidente da natureza e que por isso mesmo se sente à vontade para atacar um dos maiores ícones negros de sempre – Michael Jackson – de uma forma que um membro da mesma comunidade nunca poderia fazer, sob pena de ser condenado pelos seus pares. Ao contrário de Elvis ou Glenn Miller, Eminem não fecha os olhos e finge viver numa nuvem de brancura total. Eminem sabe onde foi buscar esta música e explica-o nas suas rimas, mencionando os afro-militantes Public Enemy ou X-Clan como marcas decisivas no seu período formativo. Eminem confunde a cor e esvazia os ataques de que foi alvo por causa das cassetes gravadas no liceu com bocas supostamente racistas quando arrasa a memória Christopher “Super Homem” Reeves em “Rain Man”. O patrão da Shady Records parece mesmo ter uma enorme amplitude de críticas para fazer e foi graças a elas que cresceu e se impôs, atacando tudo e todos: família, sangue e establishment, política, negócio e música, imprensa TV e plateia pop, governo, white trailer-trash e brothers das inner cities! Não há dúvidas, Eminem é um bulldozer que tudo destrói à sua passagem. Ou melhor, Eminem, como explicou Greg Tate (pensador negro e militante rock num mundo de brancos), é um wigga, um “white nigga” com uma língua afiada que, como Dylan e Johnny Lydon, esconde em cada um dos seus versos uma enorme carga política, um dedo apontado ao verdadeiro status-quo. Eminem, como os já mencionados Dylan e  Lydon ou até Kurt Cobain, é a voz do descontentamento de toda uma geração, o grito unificador dos que crescem agora no século XXI. Eminem é, finalmente, o sonoro ponto final na fantasia dos subúrbios. Os que achavam que existia alguma coisa de errado ao verem os “vanilla suburbs” norte-americanos a possibilitar ao rap negro dos ghettos das grandes cidades uma saída comercial (Tupac e toda a revolução negra foram sustentados por um mercado branco suburbano!) vêem em Eminem não uma reposição da normalidade, mas uma encarnação dos seus piores pesadelos pela simples razão de que assim se desfaz o surrealismo. Eminem é real como um soco no estômago. E não vai desaparecer assim tão cedo.

 


 

[O SOM DA REVOLUÇÃO]

E a música? Na Village Voice o já referido Greg Tate explica que Eminem é o homem mais livre de todo o show business, o único que não tem que carregar o fardo do gueto ou da cor ou sequer dos códigos musicais que se constroem todos os dias no universo do Hip Hop. Não há a menor sombra de dúvida de que Em faz as coisas à sua maneira. É verdade que se estreou em The Slim Shady LP (1999) como uma marionete de Dr Dre, sendo transformado num veículo para as suas produções e para a sua visão de negócio (Dre conhece bem os subúrbios brancos – já lhes tinha vendido revolução com os NWA e abandono niilista com Snoop Dogg!). Mas com The Marshall Mathers LP (2000) e “Stan”, Eminem começou a fincar o pé e, apesar dos grandes beats de Dre ou dos seus próprios skills sobre-humanos na construção e entrega de rimas, foi a sua personalidade que vingou e que vendeu todas as revistas de que foi capa. Ao segundo álbum, Eminem transformou-se num artista universal, reconhecido no planeta inteiro como dono de uma personalidade complicada e violenta, mas igualmente como a voz de uma série de hinos sagrados nos tops globais. Com o terceiro álbum, The Eminem Show (2002), Eminem instalou-se na sua fortaleza, construída na mais alta montanha erguida nesta indústria. E é em “White America”, o tema que abre esse álbum, que Eminem grita “se eu fosse negro teria vendido apenas metade dos discos.” Slim Shady, claro, não se limita a ser um dedo acusador preferindo assumir-se como juiz, júri e carrasco da própria forma de pensar que o ergueu. Dessa “White America” de que parece querer fugir de cada vez que se envolve com os seus D12, ou aposta num novo valor na sua Shady Records. E pelo meio, Em deixou um recado: no dia em que quiser deixar de gravar discos poderá sempre optar por uma carreira cinematográfica, uma vez que a sua auspiciosa estreia em 8 Mile deixou Hollywood inteira a salivar perante o seu potencial. Mas para já, Em parece estar concentrado na música, mesmo que Encore não o mostre.

O novo álbum de Eminem é, sem dúvida, o menos consistente desde o primeiro. Em parte porque Em tem consciência do enorme poder que detém nas mãos. Ele sabe que pode lançar um álbum com uma capa que o mostra, no interior, a disparar sobre uma bem vestida plateia, sabe que pode colocar sons de vómitos, arrotos e outras explosões de ar no seu disco, sabe que pode fazer rimas sobre tudo (Bush e o Iraque em “Mosh”) ou sobre nada (Em “Rain Man”, o tal tema onde ataca Christopher Reeve, Em confessa “and I don’t gotta make no god damn sense/I just did a whole song and I didn’t say shit”…), sabe até que pode dar-se ao luxo de samplar as Heart de “Crazy on You” que nada lhe acontece. Porque nunca será possível separar Eminem daquilo que ele significa. Faça-se um esforço, no entanto, e poderá descobrir-se que Dre continua a dar a Eminem alguns beats bem potentes (como é o caso do intenso “Mosh”) e que o próprio Slim Shady já assina uns instrumentais bem interessantes (“My 1st Single”). Mas é impossível não reparar que existe demasiado a passar-se à volta de Encore, demasiados fait divers, demasiadas distracções que, certamente, se colocaram no caminho da concentração de Em. Mas se mesmo distraído, Eminem continua a causar estragos, é óbvio que não há como negar o enorme talento deste artista. É que no fim, depois de espremida a política, depois de esvaziado o debate de raça, depois de amansada a violência e clarificada a polémica, Eminem é apenas um artista. E como qualquer artista, Em adora um bom Encore. Aplausos, portanto!

 


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