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Publicado a: 31/10/2015

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[TEXTO] Rui Miguel Abreu

 

Já não estamos no Kansas, de facto, e este é mesmo um admirável mundo novo. Cheio de cromados reluzentes e com outras leis da física que deixariam Newton abismado. É o que se poderia pensar à primeira se julgarmos o impacto de “Hotline Bling” de Drake à luz das velhas regras da indústria discográfica. Senão, repare-se: apresentado inicialmente no SoundCloud, ou seja, disponibilizado livremente para todo o planeta e arredores no passado mês de Julho, o tema ainda assim coleccionou vendas de cerca de 1 milhão de downloads logo que foi colocado no iTunes. Mas com 16 milhões de plays no YouTube e certamente com números igualmente galácticos noutras plataformas de streaming, os rendimentos gerados por esta música devem ser mais significativos do que aqueles produzidos por carreiras inteiras de outros artistas. Já não estamos nem no Kansas, nem sequer na mesma dimensão. Isto é outra coisa.

A sensação que se obtém depois de se analisar cuidadosamente os diferentes aspectos que rodeiam esta canção, incluindo os criativos, é que Drake entrou em estúdio para exorcizar uma qualquer dor de corno que o possa ter assaltado, bem tarde numa noite perdida, depois de perceber que as obrigações de vida na estrada nem sempre são compatíveis com os contratos de exclusividade romântica que se podem estabelecer entre duas pessoas. Talvez o caso nem seja de Drake, mas de algum dos escritores fantasma que lhe alimentam as ideias e que o assombram noite e dia. Ou, quem sabe, talvez seja apenas arguto sentido de oportunidade: um artista a explorar as novas dinâmicas das políticas amorosas numa idade de flirt digital, de snapchats e whatsapps, de instagrams e outras ferramentas que podem ajudar a alimentar o bom e velho ciúme que inspira bardos pelo menos desde o tempo em que Shakespeare dominava as tabelas de vendas.


 


 

Seja como for, Drake cantou aquelas linhas, extremamente simples, e colocou o tema no SoundCloud. Gancho e primeiro verso:

You used to call me on my, you used to, you used to
You used to call me on my cell phone
Late night when you need my love
Call me on my cell phone
Late night when you need my love
I know when that hotline bling
That can only mean one thing
I know when that hotline bling
That can only mean one thing

Ever since I left the city you
Got a reputation for yourself now
Everybody knows and I feel left out
Girl you got me down, you got me stressed out
Cause ever since I left the city, you
Started wearing less and goin’ out more
Glasses of champagne out on the dance floor
Hangin’ with some girls I’ve never seen before

Letra transparente, honesta, de um homem que sente que do outro lado há alguém que se produz para sair com novas amigas em vez de ficar tranquilamente em casa à sua espera. Um homem que assume a derrota de uma nova e libertária idade em que a mulher abandonou – ou vai abandonando – os espartilhos sociais impostos ao longo de séculos. É, nesse sentido, uma canção absolutamente moderna. Que traduz o agora. E nesse sentido ainda, será que se pode falar de uma canção totalmente despida de uma dimensão política? Claro que não é “Alright”, hino para inflamar ruas onde se erguem cartazes com #BlackLivesMatter para mobilizar consciências. A agenda de Kendrick não é igual à agenda de Drake. Mas até isso se pode ver como um sinal de coragem artística: dizer “that’s not my thing, I’ll leave it to others” pode ser difícil quando se percebe que um planeta inteiro está a seguir numa direcção. E numa era de mártires, de agitação nas ruas, de inconformismo, haver alguém que se permite traduzir para canção os sentimentos negativos que o possam assaltar noite dentro, num quarto de hotel numa cidade estranha, longe da pessoa que dantes lhe ligava e agora não lhe liga nenhuma, é estranhamente reconfortante, desarmantemente humano e cruamente honesto. Perdoem os advérbios de modo, mas é verdade. Há muita gente incrível a querer mudar o mundo, mas há gente igualmente extraordinária que nem sequer se consegue mudar a si mesma.

De regresso à Terra e à dinâmica industrial por trás da canção. Drake sentiu esse impulso, bem alto num Hilton qualquer, a olhar para as luzes da cidade cá em baixo (desculpem, mas é mais forte do que eu…), gravou a canção, meteu-a no SoundCloud, gerou milhões de plays, meteu-a à venda, ganhou mais uns tostões valentes, e, só agora, há um par de semanas, decidiu dar dimensão vídeo ao tema. É mais uma regra quebrada: em condições normais, o vídeo estaria pronto antes ainda da canção ser divulgada, mas as coisas já não funcionam assim: Drake ofereceu “Hotline Bling” ao mundo e o seu crescimento foi orgânico, com orçamento de marketing zero, sem interferências e sem calculismos. Apenas com o feedback da tal geração snapchat a amplificar o sinal muito para lá, provavelmente, do inicialmente esperado.

E o vídeo, assinado por Director X, é espantoso. Uma palavra sobre este Realizador X, rockstar por mérito próprio, com um currículo que inclui a realeza pop, de Bieber a Yeezy, de Jigga a Minaj, que já levou um tiro durante uma festa de fim de ano que ele mesmo promoveu, que é o herdeiro legítimo de Hype Williams, com quem aliás chegou a trabalhar. O clipe para “Hotline Bling”, que inspirou já umas linhas espantosas de Jon Caramanica no New York Times, é uma pequena obra-prima de minimalismo pensado para se acomodar aos ecrãs dos smartphones, muito mais do que a qualquer tela de maiores dimensões que possamos ter na sala. Aliás, a única coisa impulsiva de “Hotline Bling” é mesmo capaz de ser a sua origem, porque tudo o resto foi calculado com precisão. O vídeo, a coreografia geradora de memes, a comunicação em torno do tema enquanto produto. Outra dimensão, de facto.



E depois temos a música: o beat, assinado por Nineteen85 (mais um talento de Toronto que já forneceu produto a R. Kelly, Jessie Ware ou Nicky Minaj), é igualmente esparso na sua arquitectura, samplando de forma simples, mas inteligente, o clássico gigante “Why Can’t We Live Together” (obviamente, apetece responder, porque o teu telefone está sempre a piscar a horas impróprias e porque sais cada vez mais vestindo cada vez menos…) de Timmy Thomas, exemplo pioneiro de recurso a caixas de ritmos em contexto soul. O beat é gigante e é até deixado brilhar com quase um minuto de solo no final, sinal claro da força do trabalho de Nineteen85. À caixa de ritmos e aos stabs de Hammond originais, o produtor canadiano adiciona o boom contemporâneo que garante que o tema ressoe nos clubes. Ou até no miserável sistema de som do meu carro: não é apenas o vídeo que é pensado para resultar em smartphones, há também uma nova filosofia nas misturas destes temas – os engenheiros sabem que uma canção sobre telemóveis e os dramas a eles associados vai ser ouvida, sobretudo, em telemóveis, e por isso mesmo tudo é minimizado, como num apartamento de modernismo nipónico, com elementos esparsos, sublinhados digitalmente, e maximizados para soarem bem mesmo em colunas feitas para insultar qualquer par de ouvidos mais civilizado.

D.R.A.M., o autor de “Cha Cha” que Drake chegou a tocar no seu programa da Beats Radio, apressou-se a acusar “Hotline Bling” de plágio: mas a verdade é que são dois bichos de espécies muito diferentes. Talvez o mesmo balanço, mas arquitecturas e perfis sonoros diferentes e assuntos igualmente distintos. Se Drake se inspirou nalguma coisa foi na cadência e talvez na referência levemente latinizante da harmonia que até alimenta a sua deliciosa coreografia, mas o resto é diferente. “Cha Cha”, já agora, também merece toda a vossa atenção. Tal como merecerão a vossa atenção muitas das incontáveis remisturas (até o nosso rapaz Roger Plexico se mexeu) que a internet expeliu, qual vulcão que reage a um qualquer tremor de terra. Drake tem essa força tectónica, capaz de mover montanhas e de definir hinos geracionais, de passar ao lado das questões que mobilizam ideólogos e trazem gerações inteiras para as ruas, mas erguendo outras, quiçá mais íntimas, que nos assaltam no nosso egoísmo tão humano quanto desnecessário, mas real. As grandes canções são assim, sobre as questões que mudam rumos de vida à humanidade inteira, ou sobre os pequenos nadas que nos mantêm acordados à noite, a olhar para um ecrã de telemóvel mudo e surdo e a imaginar o que se passará do outro lado da linha. Ou do país. Provavelmente nada, mas onde é que se desliga o ciúme?

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