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Publicado a: 05/12/2016

Dos 90s ao Presente: Uma Batida Que Não Morre

Publicado a: 05/12/2016

[TEXTO] Rui Miguel Abreu [Ilustração] Paulo Sousa / Umbigo

 

Kurt Cobain, talvez a última figura tutelar do rock com dimensão de mito, desapareceu em 1994, abrindo espaço nessa década a uma divergência da música popular para terrenos menos eléctricos e mais electrónicos e talvez igualmente menos brancos e mais comprometidos com maiores doses de melanina.

Houve vários factores que contribuíram para que se possa pensar hoje na década de 90 como um terreno fértil para a música negra: o hip hop, por um lado, era uma cultura que tinha vindo a impor-se desde finais da década de 70 (estão a ver a série The Get Down de Baz Luhrmann?…), borbulhou nas margens da indústria durante todos os anos 80 dando claros sinais de vigor comercial (Run DMC, Beastie Boys, Public Enemy… MC Hammer!) e explodiu finalmente nos anos 90 permitindo à indústria aquilo que a indústria mais gosta de fazer, seja qual for a área de que possamos estar a falar – expandir o seu mercado!

Por outro lado, essa foi a década da maioridade da chamada música urbana, do R&B: as fórmulas de sofisticação experimentadas por Quincy Jones com Michael Jackson durante os anos 80 (Thriller e Bad funcionaram como moldes para muito do que chegou depois) permitiram a imposição, na transição para os anos 90, do New Jack Swing e de uma sonoridade mais electrónica e até experimental erguida por uma nova geração de produtores que seguiu o exemplo da dupla Jimmy Jam e Terry Lewis – Timbaland, Missy Eliott ou os Neptunes de Pharrell Williams viram todos as suas carreiras descolarem durante esta década.

Finalmente, há que considerar o que se passava do lado de cá do oceano, com Inglaterra a saber pegar no estímulo original da explosão house de Chicago de meados da década de 80 reclamando, a partir de 1988, uma espécie de “ground zero” para o estabelecimento de uma cultura de evolução contínua que arrancou na explosão da cultura rave nos alvores dos 90s e se foi transmutando até ao presente em híbridos cada vez mais particulares – acid house, hardcore, jungle, drum n’ bass, uk garage, 2 step, grime, dubstep, uk funky, etc, etc.

 



Este fértil cenário, como é natural, não podia passar indiferente ao presente. Atente-se que a pop gosta de funcionar nestes loops de vinte anos, facto que se explica logicamente com o espaço necessário à renovação geracional. Quem neste momento tenha 25 anos e esteja de alguma forma a criar música devedora destas sonoridades impostas nos anos 90 terá nascido em 1991 e portanto cresceu numa bolha de estímulos musicais muito particular, com a rádio e, sobretudo, com a televisão (já lá iremos à MTV…) a criar uma memória particular para o futuro. Revisitar esses estímulos originais no presente mais não é do que a resposta a um muito directo conjunto de perguntas: “Quem sou eu? O que me define? Qual a minha identidade?”

Kevin Parker, arquitecto maior dos Tame Impala, uma das eminências pardas da sonoridade indie do presente, surpreendeu com o álbum Currents, lançado o ano passado, mostrando que a sua visão particular do psicadelismo não seria totalmente impermeável às memórias dos anos 90 que temos vindo a esplanar aqui. “Foi algo declarado para mim, a vontade de citar o universo do hip hop e do R&B, que é algo que tem um peso nostálgico para mim”, explicou o ano passado o músico à revista Blitz.  “O R&B dos anos 90, quando era algo presente, era um som que eu odiava. Nesse tempo eu era um miúdo do grunge, do rock and roll. Adorava guitarras e distorção e rock pesado. O R&B que também tocava na rádio, eu odiava, ou forçava-me a odiar. E foi só quando cresci que percebi que essa música tem afinal um valor especial para mim e que tem a mesma capacidade de me transportar para um determinado período da minha vida. Por isso, para mim, o R&B dos anos 90 é o som mais nostálgico que consigo encontrar. Faz mais sentido para mim do que a nostalgia dos anos 60 ou 70 que não é uma nostalgia real. É a fingir, porque nós não vivemos esse período. É uma nostalgia à Hollywood, fabricada. Se eu quero explorar esse sentimento de nostalgia e fazê-lo de forma honesta”, prossegue o autor de Currents, oferecendo de facto uma chave para descodificar o seu mais recente trabalho, “então tenho que olhar para a música que me rodeava quando eu era adolescente e aí é inevitável confrontar-me com esse som”. Kevin Parker completou 30 anos este ano e andaria na quarta classe quando R. Kelly editou o seu segundo álbum, o primeiro a chegar ao primeiro lugar do top norte-americano criando um ruído de seda que até na Austrália se há-de ter feito ouvir.

É por isso natural que outras eminências indie – oriundas até de insuspeitos terrenos acústicos, como Bill Callahan ou Bonnie Prince Billy – reclamem o cantor de “Ignition” como uma influência marcante. O R&B dos anos 90 não impôs apenas uma sonoridade devedora de novos avanços tecnológicos nos estúdios, inaugurou também todo um novo terreno emocional que nas letras explorava novas perspectivas de envolvimento romântico, a cama, o poder do sexo e outras temáticas sem as quais gente como The Weeknd ou Drake não poderia hoje ter uma carreira.

Olhemos para outro exemplo presente: as Baby Queens, girl group do País de Gales que o Guardian apresentava recentemente num artigo como uma espécie de “TLC produzidas pelos Portishead” ou, em alternativa, “as En Vogue misturadas pelos Massive Attack” e ainda, levando a ideia de colisão entre memórias R&B e trip hop tão longe quanto possível, “as Destiny’s Child a serem envoltas nalgumas névoas de estúdio pelo Tricky”. As Baby Queens vão estrear-se em álbum no final do próximo mês de Outubro, mas são já um claro indicador de uma tendência clara e presente: há uma geração actual de criadores, de produtores, disposta a mergulhar nesta memória particular dos anos 90. E se se posicionam do lado de cá do Atlântico será mais ou menos inevitável que olhem para as pistas que gente como os Massive attack lançou em álbuns como Blue Lines (1991), Protection (1994) ou Mezzanine (1997) que são, de facto, pilares de uma modernidade que continua relevante – o entusiasmo com que Skepta, figura tutelar do grime actual, mencionava recentemente que se encontrava a caminho de Bristol para um concerto dos Massive Attack diz muito do que pesam ainda os rapazes de Robert Del Naja, o homem que, suspeita-se agora, pode ser o cérebro por trás da invenção que o mundo da arte contemporânea conhece como Banksy.

 



Olhar para o presente R&B que se estende do incontornável Frank Ocean (Blonde, acabado de editar, é um dos marcos do ano) a gente como Tory Lanez, Kehlani, Beyoncé, pois claro, PARTYNEXTDOOR, Usher (ah, pois…), Zendaya, Tinashe ou, entre tantos outros, Anderson .Paak é vislumbrar um reflexo de uma história que remonta aos anos 90, precisamente. Não apenas porque as raízes de alguns destes artistas se encontram, precisamente, firmemente plantadas nessa década (Beyoncé ou Usher), mas porque é para uma década feita de faróis como Aaliyah, TLC, Missy Elliott ou Timbaland que todos estes nomes de alguma forma remetem.

Por um lado, artistas como Aaliyah e TLC souberam misturar uma atitude declaradamente street smart, informada pelo hip hop, perfeita para uma era em que a imagem se impôs definitivamente como argumento máximo da esfera da pop. Os vídeos que a MTV então propagava até ao infinito eram fantasias que moldaram o pensamento presente de muitos artistas: não é difícil imaginar Drake ou Beyoncé de olhos colados à caixinha que mudou o mundo a projectaram eles mesmos fantasias pop de futuro que hoje consumam em objectos de inegável maturidade artística como VIEWS ou Lemonade. Por outro lado, as composições e as performances de um verdadeiro símbolo como Missy Eliott foram, sem dúvida, uma inspiração para a geração presente de vozes femininas do R&B: ela desafiou convenções de beleza, impôs um novo pensamento empresarial e, claro, fez isso tudo empurrando para a frente um som vanguardista, diferente, visionário. Tal como Timbaland, um verdadeiro génio da mesa de mistura que entendeu de forma perfeita todas as novas possibilidades da era digital compondo verdadeiras sinfonias de zeros e uns em pedaços de futuro com apenas 3 minutos de duração.

Peça final do puzzle: o hip hop do presente. Se é verdade que há hoje uma geração pouco interessada no passado, imersa no jogo trap, que mais do que uma sintonia impôs no presente uma verdadeira simbiose com um mundo feito de telecomunicações e emojis, de realidade aumentada e redes sociais em ebulição, também não é menos verdade que à cara trap este momento presente contrapõe um reverso coroa que é boom bap e devedor de tudo o que os anos 90 inauguraram e tornaram possível.

Kendrick Lamar – e toda a Top Dawg Entertainment na verdade: Jay Rock, SchoolBoyQ, Ab-Soul, Isaiah Rashad, etc – deve muito ao génio de Dr. Dre, o arquitecto principal do som do Gangsta Rap da Costa Oeste que graças à força da MTV e à proposta de um som inédito transformou nomes como N.W.A., Ice Cube ou Tupac Shakur em gigantes de uma década de prodígios comerciais e artísticos. Hoje, é para esses modelos que olham artistas como o já citado Kendrick Lamar ou Anderson .Paak, Vince Staples e tantos outros.

 



Joey Bada$$ e a Pro-Era (Kirk Knight, CJ Fly, Nyck Caution…) assumem-se, por outro lado, como continuadores da chama boom bap no presente, buscando inspiração na era dourada do som de Nova Iorque, de gente como Nas e Dj Premier, que continua ultra-activa no presente aliás. Nas tornou-se ele mesmo uma omni-presente eminência, uma espécie de guardião do espírito clássico do hip hop: através da operação Mass Appeal (uma revista, uma editora que tem lançado gente como Run The Jewels ou até DJ Shadow, e até uma produtora com responsabilidades em séries como The Get Down e documentários como Rubble Kings), Nas tem garantido que há uma memória que recua até ao seu mítico Illmatic (1994) que se mantém viva, urgente e vital.

2016 está a ser um ano especial para o hip hop, com inúmeras propostas discográficas de elevada qualidade, muitas delas de pés firmemente fincados no presente e de olhos resolutamente apontados ao futuro. Mas há também propostas de inegável qualidade que ou remetem para a década do Gangsta Rap e da Golden Age ou emanam directamente daí: os De La Soul – que se apresentaram este ano no Super Bock Super Rock quase exclusivamente com um reportório de clássicos – acabam de lançar um novo e entusiasmante álbum, And The Anonymous Nobody, em que se cruzam com gente como Pete Rock, Snoop Dogg, Usher ou David Byrne, em que demonstram ter aprendido as amargas lições do lado “business” desta indústria e se preparam estoicamente para um futuro de novas conquistas para as quais as peças discográficas do seu glorioso passado – sobretudo as que apresentaram ao mundo nos anos 90 (a estreia com 3 feet High and Rising é de 1989, mas De La Soul Is Dead, Buhloone Mindstate e Stakes is High são clássicos incontornáveis dos 90s lançados, respectivamente, em 1991, 1993 e 1996) – serão certamente um decisivo pilar.

E há um artista que, de certa maneira, emoldura na perfeição a premissa deste artigo, que procura ilustrar a ligação umbilical entre os anos 90 e o presente através da música negra: DJ Shadow (outro artista que também passou pela edição 2016 do SBSR).

Shadow editou há um par de meses um sólido novo álbum, The Mountain Will Fall, em cuja arquitectura sonora se adivinha a sua nítida marca de água feita de sampling inteligente, mas também uma vontade de desbravar futuro através de novas possibilidades de edição e programação digital. Mas DJ Shadow também se prepara para assinalar os 20 anos da sua decisiva estreia que aconteceu com o seminal Endtroducing, um álbum que explicou ao mundo que o presente se podia fazer da reciclagem do passado e que o sampler permitia vergar as coordenadas de espaço e tempo à vontade da imaginação. Esse é talvez um dos discos que mais lições ensinou aos produtores contemporâneos, um autêntico tratado de invenção e reinvenção através da apropriação de matéria alheia. Para uma era que se faz hoje de possibilidades infinitas de captura através das novas ferramentas de edição digital, essas lições contidas em Endtroducing foram inspiradoras, decisivas até. Vem aí reedição oportuna dessa obra-prima. E até parece que Hudson Mohawke assina uma das remisturas para esse relançamento: teremos, portanto, passado e presente – duas peças fundamentais para se construir o futuro.

 


 

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Texto originalmente publicado na revista Umbigo. O número da Umbigo em causa pode ser consultado aqui.

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