pub
[TEXTO] Ricardo Nogueira Fernandes [ILUSTRAÇÃO] Riça
“Naquela tarde quebrada
contra o meu ouvido atento
eu soube que a missão das folhas
é definir o vento”
Segundo Sousa Dias, a poesia de Ruy Belo é visão. Possui, não pelos meios utilizados mas pelo seu efeito, uma outra forma de arte visual, uma forma de visão que ensina a ver. Isto não significa que a poesia, a grande poesia, tenha ou deva ter uma vocação realista no sentido corrente, mas sim que a imagem poética dá sempre a ver mais realidade, que a poesia é uma espécie de cognitio sensitiva ou possui um poder sensível, que não é intelectual ou conceptual, mas de revelação ontológica e cosmológica. Já o trabalho sonoro do o produtor de ambient Eric Holm dá e ensina a ver os espaços sonoros que experiencia, transportando‑os para as suas composições.
A primeira coisa que Eric Holm, músico americano residente em Londres, queria ser quando criança era mergulhador. Costumava passear pela casa com a sua máscara e barbatanas, fazendo mergulhos de costas para trás do sofá entre outras coisas. A primeira vez que Holm, em adulto, colocou o rosto debaixo de água, com o equipamento de mergulho, foi marcante. Holm afirma que gosta da psicologia de estar debaixo de água, de chegar ao ponto em que não se pode mais subir. A sensação de se estar nessa extensão quase infinita que é tão avassaladora, de impotência contra o mar. Nunca se cansa da beleza da luz acima, com todas as formas de vida lá em baixo.
De acordo com E.H. Gombrich, o advento da máquina fotográfica portátil e do instantâneo ocorreu na mesma época que presenciou a ascensão da pintura impressionista. A máquina fotográfica ajudou a descobrir o encanto das cenas fortuitas e do ângulo inesperado. Além disso, o desenvolvimento da fotografia iria impelir ainda mais os artistas no seu caminho de exploração e de experimentação. Não havia necessidade de a pintura executar a tarefa que um dispositivo mecânico podia realizar melhor e mais barato. No passado, a arte da pintura serviu numerosos fins utilitários, como o registo da imagem de uma pessoa notável ou de uma residência campestre. O pintor era um homem que podia registar a natureza transitória das coisas e preservar o aspecto de qualquer objecto para a posteridade.
De certo modo, quando a música assume linguagens que não pretendem produzir canções, o espectro sonoro torna‑se abrangente e permite a reflexão acerca do som em si e dos espaços que habita ou evoca. Holm afirma que não quer tocar nenhum instrumento. Não está interessado em sintetizadores, em caixas de ritmos, ou em baterias. Só se interessa em como as coisas soam. Confessa que costumava ouvir música, ou mais propriamente, o som, por motivos estranhos, seleccionando uma ou outra introdução, na procura de aspectos texturais da música, em vez do que é tradicionalmente pensado em elementos composicionais como melodias. Para Holm, a música é feita de textura. Indica que se pode construir um arranjo, mas o instrumento em que é tocado tem um certo carácter, um sabor que todos os sons possuem. Passou muito tempo à procura de música para violoncelo porque gosta do som do instrumento, contudo, encontrou dificuldade em encontrar qualquer coisa com que se pudesse realmente identificar, então gravou alguns violoncelos e começou a brincar com as diferentes gravações. Holm queria fazer música com ruídos que ninguém mais gravou, coisas que não conseguiria fazer de outra maneira. Interessou‑se em gravar sons minúsculos de coisas, como pequenos arranhões, e acabou por ser levado a fazer e a usar microfones de contacto na tentativa de obter gravações realmente claras com o mínimo de ruído possível.
O primeiro álbum de Holm é fruto de uma série de gravações efectuadas recorrendo a um microfone de contacto colocado num poste de telégrafo remoto localizado num posto avançado localizado a 300km a Norte do círculo Árctico. Situado na ilha de Andøya, que deu nome à edição, o poste conecta as estações de escuta militares da ilha. Estes sons foram posteriormente esticados, alterados no seu tom ou afinação para criarem uma expansão detalhada deste momento sónico solitário, moldando o som numa meditação imersiva sobre o Homem, a natureza e o isolamento. O poste telegráfico é conectado a uma rede aparentemente infinita de linhas transversais e aproveita o ambiente denso da paisagem, absorvendo e destilando a essência do carácter de Andøya.
Holm passou algum tempo a trabalhar em mergulho recreativo. Depois do lançamento do primeiro trabalho, Holm fez um curso para obter certificação em mergulho comercial na Noruega, esperando também poder gravar coisas debaixo de água, processá‑las e ver o que poderia fazer com elas. O músico queria capturar o período romântico em que se encontrava, antes de se perder no dia a dia do mergulho para ganhar a vida. Fruto deste período, o LP que se seguiu, Barotrauma, que, de acordo com Holm, é enormemente conceptual, as fontes provêm de gravações efectuadas a 50 metros abaixo da superfície nos fiordes sub‑zero da Noruega.
Como já mencionado, o material de origem para Barotrauma foi registado nos fiordes nórdicos ao sul de Oslo, um complemento ao treino de Eric Holm na Escola Norueguesa de Mergulho Comercial (Norsk Yrkesdykkerskole). Enquanto estava a treinar, os preços mundiais do petróleo entraram em colapso. Com um futuro incerto, Holm decidiu gravar e filmar os seus mergulhos, capturando a calma solitária do seu isolamento nestas águas escuras. Tal como os ambientes em terra, o fundo do mar é povoado por máquinas, indústria e ruído. A interferência está em todo o lado. Motores, equipamentos, perfuração: é um espelho da exploração ambiental terrestre. As seis faixas que compõem o álbum foram criadas em dois anos, usando os sons colectados, manipulando‑os e processando‑os, moldando uma visão do seu tempo neste ambiente subaquático.
“Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido”
pub