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Publicado a: 02/05/2018

Crónicas de um HipHopcondríaco #1: Cogito, ergo sum

Publicado a: 02/05/2018

[TEXTO] Manuel Rodrigues [ILUSTRAÇÃO] Riça

Em 2005, Gabriel o Pensador editou Cavaleiro Andante, o sexto álbum de estúdio que continha canções emblemáticas como “Bossa 9” (que homenageava o clássico “Garota de Ipanema” de António Carlos Jobim e Vinicius de Moraes), “Palavras Repetidas” (que pedia emprestado o refrão “é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã” dos Legião Urbana) e “Tás a Ver?” (com a participação de Adriana Calcanhotto e, no final do refrão, com recurso a um sample de Sérgio Godinho). Nesse mesmo álbum, que eu fiz questão de ouvir vezes sem conta até decorar as letras todas, era possível encontrar “Tudo na Mente”, um tema incrível no qual Gabriel evidenciava, mais uma vez, toda a sua destreza enquanto letrista:

“Conheço gente que tem tudo na vida,
conheço gente que não tem quase nada
Conheço gente que tem muito e divide o que tem,
conheço gente que tem muito e divide também
Na minha vida eu vi que a grande verdade,
é que toda a verdade pode ser questionada
Só duvido de quem chega como dono da verdade,
porque essa é a mentira mais contada”

É nestas últimas linhas que quero focar o primeiro episódio desta crónica. De facto, Gabriel o Pensador sempre foi um inconformado desafiador e agitador de mentes. Um dos seus grandes singles, “Até Quando?”, presente em “Seja Você Mesmo (mas Não Seja Sempre o Mesmo)” vai exactamente nesse sentido. Brutalidade policial, injustiça social, a cultura do medo, os meios que o sistema utiliza para nos adormecer, o ciclo vicioso em que isto se pode tornar. Tudo isto mergulhado num ritmo samba — onde podemos também encontrar rock — e rematado com uma batida tão forte quanto a própria realidade que o artista descreve.

 



No nosso dia-a-dia somos constantemente bombardeados com verdades que se assumem ser absolutas. Muitas delas não passam de teorias infundamentadas, transmitidas de pessoa para pessoa como um testemunho que se entrega numa prova de estafetas. Poucos são os que realmente desafiam tal processo, partindo em busca de respostas com alicerces sólidos, normalmente acompanhados de números, provas científicas e casos de estudo. O mais recente caso na minha vida deu-se no ano passado, quando um conjunto de documentários sobre alimentação (Food Inc, Fed Up e Hungry for Change) levantou o véu sobre toda a farsa que é a indústria alimentícia, todo o lobby inerente e, claro, todos os malefícios para a saúde pública.

No fundo, todos nós fazemos uma pequena ideia do que se passa nos bastidores da produção dos alimentos que diariamente ingerimos. Todavia, não há nada melhor do que uma visita guiada por esse processo para tomarmos realmente consciência do que se passa. E não falo apenas dos matadouros e da tortura sanguinária a que os animais são submetidos. Esse parece ser um dado há muito adquirido. Falo, isso sim, de todo o impacto ambiental associado à produção de gado, a questão das sementes transgénicas utilizadas e, por fim, o mito que nos diz que a ingestão de outros animais nos garante a sobrevivência. As resposta é-nos dada por cientistas, nutricionistas e, inclusive, atletas vegetarianos de alta competição que nos garantem que a ausência de proteína animal no sistema não lhes influencia o desempenho no quotidiano.

No século XVII, o filosofo francês René Descartes formulou a frase “cogito, ergo sum” (traduzida para português como “penso, logo existo”) depois de ter duvidado da verdade de todas as coisas. Basicamente, é como se o existir dependesse do facto de pensar, de não acreditar em tudo à primeira, de questionar e procurar respostas, de desafiar e não se deixar conformar. Tal exercício é constante na obra de Gabriel o Pensador. Em “Que Tiro Foi Esse? (Bala Perdida)”, o mais recente tema interpretado no programa Fantástico da TV Globo em plena época de Carnaval, o rapper brasileiro apresenta factos reais e duros (no fundo, conta a história de várias crianças inocentes mortas por balas perdidas em assaltos e/ou rixas) como forma de criticar o facto da sociedade brasileira (classe política incluída) continuar a viver bem com isso.

O vídeo da actuação mostra várias imagens de cerimónias fúnebres, onde familiares choram a perda precoce. Enquanto isso, o rapper serve as suas rimas frias acompanhadas de perguntas e estímulos mentais embebidos numa racionalização séria e profunda.

Gabriel pensa, logo, existe.

 


https://www.youtube.com/watch?v=1VyhjYbb7Bo

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