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Publicado a: 15/08/2017

Criolo: “Vivemos uma gangrena social absurda, uma falta de respeito escancarada”

Publicado a: 15/08/2017

[ENTREVISTA] Núria R. Pinto [FOTO] Direitos Reservados

Hip hop, samba e uma alma continuamente em construção. Estas talvez sejam as ideias que definem os pouco mais de quinze minutos da conversa que tivemos com Criolo, horas antes da sua apresentação n’O Sol da Caparica. Com perto de 30 anos de carreira, o rapper do Grajaú acaba de lançar um álbum exclusivamente dedicado ao samba o que, segundo ele, parece não ter sido mais do que um exercício de deixar fluir as emoções. A nós, já nos parece bastante.

Bem-disposto e com uma crença contagiante no poder individual, o MC falou ao ReB sobre o seu último trabalho e a forma como se relaciona com o seu lado emocional.

 


“Eu não peço para vir em samba como não peço para vir em rap. Essas coisas, elas acontecem. Eu não sou dono dessas emoções.”


Lançaste um álbum agora, Espiral de Ilusão, já andavas a namorar o samba há alguns anos mas agora decidiste oficializar esse matrimónio…

Sim, é verdade.

Como é que isso aconteceu?

Eu me vi num momento, no ano passado, em que eu tive coisas pessoais, vivi muita intensidade de muita coisa na minha vida pessoal, e os sentimentos eles sempre desaguam em forma de música na minha vida. Letras, melodias… vem tudo junto. Mas em especial nesse momento da minha vida, tudo veio em samba. E eu não peço para vir em samba como não peço para vir em rap. Essas coisas, elas acontecem. Eu não sou dono dessas emoções. Eu tento conviver com as minhas emoções e eu tento conviver com a situação que é tentar lidar com as emoções, tentar resolvê-las ou aceitá-las completamente. Então eu não sou dono disso. E tudo veio desaguando em samba e de um jeito tão forte que me conectou com outros momentos vividos, de forte emoção, e acabou que dessa energia toda nasceu esse álbum… mas muitas canções não foram. Muitas canções, muitas canções não foram!

Já tens um acervo grande de samba, imagino que para muitos álbuns…

Olha, vai ver não foram porque não era para incomodar os vossos ouvidos (risos)! Mas assim, o grande lance é que a música, de um jeito muito especial, tenta jogar para o mundo o que você sente. Um álbum é muito especial porque é um registo daquele momento. Mas é um recorte de tantas emoções que você tem, um recorte de tanta musicalidade que te visita. É apenas um recorte… As emoções eu guardo todas comigo e eu acho que eu vou dividindo um pouco a cada show porque nunca é o suficiente. Nunca é o suficiente. Nós queremos transbordar essa emoção, nós queremos que as pessoas transbordem as suas emoções, nós queremos que as pessoas se sintam vivas, só assim uma verdadeira revolução interna vai acontecer! Quando você se sente vivo, quando você se sente capaz, quando você se percebe e percebe o outro. Então… é isso e mais um tanto.

 


“Eu acho que as coisas só fazem sentido se existe a sua verdade. Se tem a sua verdade essa sua verdade vai dialogar com o mundo.”


Sentes muitas vezes isso, ou seja, sais muitas vezes do palco com vontade de lá ficar?

Muitas vezes. Eu não quero que acabe nunca esse momento. Eu dedico minha vida toda, já são 30 anos dedicando a minha vida a esse momento e a poder ter a honra de subir num palco. E isso é muito forte, o palco ele é muito generoso mas ao mesmo tempo o palco é um dos lugares que mais exige a sua disciplina, que mais exige a sua dedicação, que mais exige o melhor do que você tem para deixar para o mundo. É uma relação muito forte porque somos todos seres em construção mas quando a arte te visita algo especial acontece e você começa a enxergar de uma outra forma a sua construção. Quiçá perceber que existe construção! Porque muitas pessoas imaginam que sua vida é em vão. Que vão viver sua vida e isso é em vão e tudo bem! Mas não, todos são importantes. Todas as pessoas são protagonistas de suas histórias. Por mais que você esteja num canto agora, nesse momento, ouvindo essa conversa e ache que ninguém esteja olhando para você, você é especial. Por mais que você ache que você não tem energia para o mundo, que você não é nada, você tem energia para o mundo e você é tudo e a música ajuda nesse processo de auto-conhecimento.

Achas que existe um pouco de receio, na cena do hip hop brasileiro, dessa aproximação ao samba, no sentido de descaracterizá-lo? É que tu abriste um caminho para abraçar o samba de uma forma muito mais ampla…

Eu acho que não, acho que tudo se fortifica. O hip hop mundial já fala ao mundo que ele vem de uma mistura. E ele vem de uma resignificação de situações e culturas. Quando um garoto está girando no chão fazendo um movimento de break, ele está fazendo aquele helicóptero do Vietname porque ele não queria que a guerra acontecesse. Então já houve uma mistura de situações. Houve uma mistura de pensamentos, de histórias e de porquês. Eu acho que as coisas só fazem sentido se existe a sua verdade. Se tem a sua verdade essa sua verdade vai dialogar com o mundo. Algumas pessoas podem esteticamente gostar, esteticamente não gostar, algumas pessoas podem admirar o seu texto ou não admirar o seu texto mas você sempre será respeitado pela sua verdade e é isso que faz com que as pessoas se conectem. As verdades. Então o hip hop já é plural e já oferece essa pluralidade, inclusive ele é ferramenta que aguça, que provoca esse encontro. Quando um jovem beatmaker está fazendo uma instrumental, ele quer fazer a instrumental mais poderosa possível, que mais toque o coração de alguém e ele faz uma vasta pesquisa. Ele pega música do Tibete, ele pega música aqui de Lisboa, de Lagos, do Maranhão… Naturalmente ele está visitando energias de outras culturas, de outras estéticas sonoras. Então isso é muito natural e rico, riquíssimo! Agora, a acção desse álbum de samba foi de verdade uma grande homenagem a essa coisa tão especial e maravilhosa que é o samba e aquele momento, da minha vida, no meio do ano passado, realmente muita coisa de emoção me visitou e desaguava em samba e eu não era dono disso. Aconteceu, assim.

Achas que isso teria acontecido se não tivesses já os quase 30 anos de carreira no hip-hop? Achas que este poderia ter sido um primeiro álbum?

Não sei. Nunca dá para saber, nunca dá para saber… Mas existem muitos sentimentos no coração e na mente de cada compositor e nem tudo vai para os álbuns. Eu acho que um pedacinho dessa emoção vai para o álbum mas nos somos um ser total e essa emoção ela se renova, esse sentimento se renova, esse texto se resignifica. Porque estamos em eterna construção. Por isso a importância de uma apresentação, de um concerto, a importância de estarmos em contacto com as pessoas, porque você divide tantas outras energias que não dá para se guardar num álbum.

 


“Vivemos uma gangrena social absurda, uma falta de respeito escancarada. Antigamente eles tentavam esconder mas agora está escancarado e dane-se, eles não estão nem aí para o povo…”


Tens outros escapes para essas emoções, artisticamente falando?

Recentemente eu participei num filme, dirigido pelo Andrucha (Waddington), com texto da Fernanda Torres. Em Janeiro ou Fevereiro vem em cartaz e eu sempre agradeço muito esses convites. Já é o terceiro ou quarto filme em que participo e tem sido uma experiência muito boa. Então, isso tem acontecido também.

É quase inevitável falarmos de como as coisas estão, neste momento, no Brasil. Há uma tensão social muito grande mas ao mesmo tempo parece que existe uma certa passividade que pode ser vista como sinónimo de algum cansaço da população… Também sentes isso?

A população toda se reúne e diz que não quer uma coisa. Lá, os parlamentares, entre eles, se reúnem e definem o que é interessante para eles. Ponto.

Não há consulta do povo…

Acabou o assunto. Vivemos uma gangrena. A democracia já foi enterrada, há muito tempo. Vivemos uma gangrena social absurda, uma falta de respeito escancarada. Antigamente eles tentavam esconder mas agora está escancarado e dane-se, eles não estão nem aí para o povo…

Mas é assim, existe uma coisa que é muito bonita que é a juventude e ninguém ganha da juventude. Nós temos que ter esperança, e talvez esperança até seja uma palavra que tem uma história muito maluca, mas nós temos que ter um olhar de carinho e dar apoio e suporte aos nossos jovens porque é através deles que vai acontecer algo bom, algo especial, a transformação vem através da nossa juventude.

 


Criolo n’O Sol da Caparica: A aula de hoje é sobre transformação

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