[TEXTO] Ricardo Farinha [FOTOS] Diogo Cruz
Em tempos, o Cais do Sodré, em Lisboa, era uma zona de diversão nocturna que também incluía bordéis, casas de alterne e derivados, para regozijo dos marinheiros que atracavam no porto de Olisipo. O que coincide na perfeição com o terceiro capítulo da história de Corona, a personagem criada por dB e Logos, que, depois de estar hospitalizado, se tornou um empreendedor dos prazeres da carne/noite, chamemo-lhes assim, baseado em Cimo de Vila, a mítica rua do Porto conhecida por essas mesmas actividades.
Mas não foi por isso que o (agora) Conjunto Corona veio apresentar o novo disco esta quinta-feira, 29 de Dezembro, ao Musicbox. A tradição já é antiga. Afinal, a sala que fica na chamada rua cor-de-rosa tornou-se o ponto de paragem obrigatório sempre que cá vêm apresentar um novo trabalho. E desta vez não foi diferente. Pelo menos, nesta parte.
Confesso ter uma falha no currículo se falarmos na história das apresentações de álbuns de Corona em Lisboa. Estive no primeiríssimo de todos, aquando do lançamento de Lo-Fi Hipster Sheat — poucas semanas depois desta dupla diferente de tudo o que já existiu se ter apresentado ao mundo —, numa sala não muito cheia, mas falhei o segundo, sensivelmente um ano depois, quando foi editado Lo-Fi Hipster Trip.
Em comparação com a estreia, este foi, certamente, diferente, em vários aspectos: a casa estava completamente a abarrotar e confirmou-se uma tendência que já vinha a ser notória. Os reais não estão preparados para isto, mas os hipsters estão (e os “reais” também gostam de Corona, deixemo-nos de coisas).
Com a ajuda dos Ganso — banda de rock psicadélico que fez o chamado warm-up da noite —, o público tinha mais pinta de rock alternativo e de música indie do que de hip hop, dada a ausência de bonés, vulgo caps. Era ambiente de Paredes de Coura. Caramba, até os Capitão Fausto estavam no Musicbox, ficamos à espera de um feat.
Hipsters ou hip hop (e com muitos beats psicadélicos e kraut à mistura), a verdade é que a atitude foi punk: Corona veio para abanar a sala, pôr os corpos a mexer, criar um clima de adrenalina selvagem e chocar um pouco aqueles que “não estão preparados”. Afinal, deixem-se de merdas, “o hip hop [também] não tem regras”. E um par de microfones e uns pratos podem ser mais punk do que muitas guitarras.
Durante hora e meia (será? acho que ninguém deu pelo tempo passar), dB, Logos, Kron e o inigualável “homem do robe” que é, indubitavelmente, a materialização de Corona, desfilaram temas (é como se fossem todos singles) e puseram o Musicbox, e Lisboa, com um cheirinho a Cimo de Vila. Tudo pode ser comparado — “Bangla” foi dedicado à Avenida Almirante Reis, por exemplo; e, como já havia sido prometido, “Mafiando Bairro Adentro” foi cantada numa versão alternativa, com os hoods de Lisboa (mesmo que alguns fiquem na Margem Sul e outros nos subúrbios da capital; geografia adiante).
Pelo meio, houve degustação de hidromel vindo directamente d’O Portinho e, na segunda metade do concerto, múltiplas sessões de crowdsurf, stagedive e mosh, em temas como “Pontapé nas Costas”, com a participação de Blasph, “Trindade James”, “Fillin’ Up Chouriços”, “Pacotes” ou o encore de “Chino no Olho”, tocado pela segunda vez na noite. Sem dúvida que os instrumentais “analógicos” de dB contribuem muito para o espírito de Corona ao vivo.
É ainda digno de registar que os Corona interpretam as letras dos convidados quando não estão presentes, o que ainda é algo raro no hip hop mas que faz todo o sentido, especialmente em discos como estes, recheados de boas rimas alheias. Mais uma vez, “o hip hop não tem regras”, e, além de Mike El Nite e Fred&Barra, também subiram ao palco alguns membros mais entusiastas do público e até o vocalista dos Ganso, João Sala, que decidiu enveredar momentaneamente pela carreira de rapper e improvisou algumas rimas até ser ovacionado pelo público; ele que conheceu os Corona quando, no tal concerto de apresentação de Lo-Fi Hipster Trip, a que faltei, subiu ao palco em “Fillin’ Up Chouriços”, tal era a energia, que se sente que se tenha potenciado ainda mais este ano. Desta vez não teremos de esperar tanto, já que a dupla — quarteto? — é um dos nomes que figuram no cartaz do Lisboa Dance Festival, marcado para Março.
Queremos mais, Corona, e obrigado por um dos melhores concertos que vimos este ano. Vós é que sois demasiado gentis.