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Publicado a: 03/04/2017

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[TEXTO] Diogo Pereira

Quanto humor há no hip hop português? Muito pouco, certamente. Além das punchlines inerentes à battle rap, temos pouco de explicitamente engraçado ou ligeiro no universo de rap nacional. A maior parte dos rappers portugueses leva-se a sério, inquestionavelmente, e muitos despendem boa parte do seu tempo no microfone a falar do quão importantes são as suas vidas e a sua arte, e quão depressa vão dilacerar liricamente os seus adversários com diligência e aprumo.

Os Corona (agora Conjunto Corona) parecem ter vindo preencher essa lacuna, bem como outra que escasseia no hip hop do burgo: o concept album.

Não há muitos exemplos do género no rap português, além de Beats Vol.1 – Amor, de Sam The Kid, que conta a história de amor dos seus pais numa odisseia de hip hop instrumental, e das experiências de Armando Teixeira enquanto Bulllet.

Cimo de Vila Velvet Cantina não é, em verdade, um concept album, porque não se leva demasiado a sério para isso. Mas partilha da sua natureza: é cinematográfico na sua visão e ambição de criar um universo estético e temático coerente ao qual permanece fiel até ao fim.

Não há um conceito que una o álbum inteiro, mas antes um conjunto de faixas desconexas subordinadas a um único tema: o sexo.

O tom é, sem dúvida, tongue-in-cheek, e a música tem muito a ganhar com essa abordagem (embora não tenha nenhum problema em cair, sem pudor, no mau gosto assumido).

Tom esse que é definido logo no início com “Queres-te Vir?”, uma intro de 1:14 que começa com um diálogo de cama bem picante, seguido de um excerto de música romântica estilo Demis Roussos, que bem poderia estar incluída numa playlist de uma boate mais madura.

A partir daí, há canções explicitamente sexuais de sedução e fanfarronice na cama (“Noite de Natal em Cimo de Vila”, “Fruta da Ilha”, “Andar Oh Cheiro das Minadas”) e outras mais galhofeiras, em tom faux-mafioso (“Chino no Olho”, “Mafiando Bairro Adentro”).

 



O mais parecido com isto no universo de concept albums do hip hop alternativo é Lovage, projecto pitoresco/sensuo-kitsch de Dan the Automator com Mike Patton e Jennifer Charles. Lírica e musicalmente, é idêntico: lascivo, suave, brincalhão, nocturno e fumarento. Embora neste caso o objectivo é ser mais sleazy do que sexy, mais jocoso que sensual, mais denotativo que sugestivo.

 




Outra referência meritória e certeira para enquadrar Cimo de Vila é A Prince Among Thieves, concept album humorístico de Prince Paul de 1999, que conta a história de um jovem rapper que tem de juntar dinheiro para gravar uma demo, e pelo caminho é obrigado a atravessar um submundo de traficantes de droga e de armas, proxenetas, presidiários, empresários sem escrúpulos e polícias corruptos, numa autêntica rap opera.

 



Este é, de certa forma, um habitat semelhante, ocupado por proxenetas e prostitutas baratas, bares de lésbicas, bordéis de quinta categoria, pornografia de baixo orçamento, salões de jogo ilegal, venda de peles em segunda mão e crime organizado de baixo nível. Com todo o glamour do gangsta rap, mas sem nenhuma da violência e seriedade, acrescentando ainda uma generosa dose de sátira. Como seria de esperar, o sexo e o crime dominam o álbum, e é admirável a criação de um universo que é também icónico à sua maneira, dada a presença de referências e objectos únicos, como o hidromel, o petit gateau, o pavão, a meia e o chinelo e muitas iterações de “Tu põe-te fino…”.

A estética gonzo permeia todo o álbum, desde o aspecto dos músicos, com o cabelo encharcado de brilhantina, camisa de padrão tigrado, meia branca, bijutaria barata e Ray-Bans de aviador, às letras assumidamente brejeiras e à música, um funk melado e sensual, que confluem para uma geral abordagem de style over substance.

Deliciam-se no sórdido, no barato e no chunga, sem quaisquer juízos de valor ou sobranceria. Não em jeito de homenagem, porque não há esse distanciamento, mas em jeito de brincadeira. Afinal, foram estes senhores que quiseram fazer “o disco mais pornográfico e cheesy de sempre”.

Por isso mesmo, não é de estranhar que o único formato físico de Cimo de Vila Velvet Cantina seja o VHS, segundo dB, “um daqueles que se vende em estações de serviço”.

A capa é deliciosa, e não deixa margem para dúvidas sobre o que está lá dentro: sob um fundo de manchas cor-de-rosa de um leopardo bem felpudo, surge no centro um freeze-frame de um porno vintage, em que uma mulher já de meia-idade, usando maquilhagem de prostituta barata e uma fita vermelha de Jane Fonda workouts a segurar os seus caracóis pretos, grunhe de prazer enquanto é tomada por trás por um jagunço de peito tonificado, em cima de um título em néon azulado e luzes de camarim a fazer lembrar o letreiro de um cinema porno antigo. E também há que notar a etiqueta mal colada.

O vídeo, ideia engraçada e pitoresca para um teledisco, embora aborrecido de se ver, consiste num plano estático e contínuo de um cenário cuidadosamente decorado: um homem de meia idade (o famoso Homem do Robe), vestido com um roupão dourado com as letras CORONA LO-FI HIPSTER SHEAT impressas no cimo das costas, meia na cabeça e sem calças, entra em casa e senta-se numa cadeira desdobrável rasca, em frente a uma secretária de mogno antiga, coloca uma Happy Meal em cima da mesa, junto a uma garrafa de Bisolvon, um boião de snacks do Lidl, um maço de tabaco, uma embalagem de gotas para os olhos, um mata-moscas, uma garrafa de Logan, uma lava lamp e uma embalagem de lubrificante, enfia a dita cassete num leitor de VHS aninhado entre uma Super Nintendo e um minúsculo televisor 4:3 (todo este setup audiovisual abençoado por um pechisbeque de Nossa Senhora), e começa a ver aquilo que parece, ao longe, um filme erótico vintage, abanando a cabeça ao som da música, e ocasionalmente interrompendo a sessão para limpar o ecrã com os dedos (ou o suor da testa), sorver uns golos de Logan do seu copo de plástico, fumar um charro, matar uma ou outra mosca, trincar um aperitivo, comer a sua Happy Meal, levantar-se para coçar o rabo, esfregar lubrificante nas mãos e, é claro, masturbar-se.

Ou seja, é uma punheta de 42 minutos.

Esta é a prova que os Corona não se levam a sério nem estão interessados em mérito artístico. Querem divertir-se e divertir-nos. Despretensiosismo a rodos.

Por falar nisso, no que toca a pura e desenfreada boçalidade, “Fruta da Ilha” leva o prémio máximo, um relato detalhado de práticas sexuais que entra no universo estético e lírico de 2 Live Crew e Sir Mix-a-Lot. Quando começamos a ouvi-la, o imaginário pimba de Quim Barreiros vem-nos à mente, mas a boa música depressa nos faz esquecer esse universo. É este o grande mérito dos Corona: abraçar o kitsch sem medos, mas nunca caindo na foleirada completa ou na indigência artística.

Mas as canções vencedoras são, sem dúvida, “Chino no Olho” e “Mafiando Bairro Adentro”, a primeira ancorada num refrão de ataque a músicos populares, a segunda num call and response em torno de bairros suburbanos locais, ambas com baixos deliciosos a embalar letras mafiosas de uns senhores de mau carácter mas cheios de estilo e de quem é impossível não gostar.

 



A narrativa recupera os dois primeiros álbuns em que Corona teve uma passagem conturbada pelo tráfico de droga, que incluiu uma estadia no “Sheraton dos queimadinhos” para efeitos de desintoxicação. Desta vez, depois de “deixar a velha”, e munido de um “maço de ideias e propósitos”, Corona instala-se na famosa rua portuense de Cimo de Vila, notória pela sua vida nocturna, onde abre um estabelecimento de diversão. Ancorado no mundo real do crime organizado reles, mas dotado de qualidades surreais e cartoonescas (incluindo a sua voz), Corona quase que se assemelha a Quasimoto, um dos alter-egos de Madlib.

 



É muito semelhante aos seus dois antecessores, Lo-Fi Hipster Sheat e Lo-Fi Hipster Trip, em termos estilísticos, sonoros e líricos: tem os mesmos catchy hooks, o mesmo humor nas letras, os mesmos skits e interlúdios instrumentais e os riffs de guitarra psicadélica. Mas este é mais ambicioso, na duração e na ousadia das letras, e foca-se menos nas drogas (nos efeitos ao tomá-las e nos problemas em comprá-las) e mais no sexo.

Os dois primeiros álbuns foram descritos como óperas krautrock e, embora este tenha sido descrito como “um álbum híbrido que navega entre os universos do hip hop e do rock psicadélico”, desta vez há menos electrónica e rock e mais hip hop tradicional.

Em geral, a produção de dB continua irrepreensível: consiste em batidas lentas e melosas em modo chill out/downtempo, muitos baixos gordos e lânguidos, riffs de guitarra de smooth jazz e rock psicadélico, grandes sopros orquestrais de funk e bandas sonoras (destaque para o que abre “Meio Crocodilo”), saxofones e flautas que se derretem nos nossos ouvidos, vintage synths e muitas vozes sedutoras.

Nota-se que passou muito tempo a fazer digging, não apenas na secção de funk/soul e psychedelic, mas também no caixote de bandas sonoras de blaxploitation e cinema erótico dos 60s e 70s para melhor se imergir neste universo estético.

Conforme escrito anteriormente, a música é sedutora e viciante, e está cheia de refrões, intensamente catchy e pop, prontos para serem cantadas por rapazinhos pré-adolescentes excitados em colégios privados por todo o país (“Mama eu não quero mais/Fluidos vaginais”).

Aliás, há canções tão viciantes que são inteiramente compostas a partir de duelos de refrões, como “Trindade James” e “Redenção na Igreja dos Grilos”.

É uma questão de tempo até darmos por nós a cantar coisas como:

“Atento no que desfoca/ A coelha deu na toca/ Atento no que desfoca/ A coelha deu na toca Pois é”

Ou

“Vai no sobe e desce/ Querida vai no sobe e desce/ Só não sabe o sobe e desce/ Quem não ouve o sol-e-dó”/ “Desliza, desliza, desliza/ Eu passo o Visa, o Visa, o Visa”

Ou

“A filha nunca comeu da fruta da ilha/ A filha nunca comeu da fruta da ilha/ Tinha tanto sumo que verteu da bilha”

E ainda o delicioso

“Putas, levantem as batutas/ Proxenetas, deixem-se de tretas/ Ressacados, por todos os lados/ Abanem o traseiro ao som do verdadeiro”

E até há parelhas que parecem adaptadas de canções infantis:

“As fufas do Pibx andavam de mão em mão/ As fufas do Pibx andavam de mão em mão/ Foram ter à casa nova lá perto do São João”

As letras, a cargo de Logos, são imediatas, brejeiras e marcadamente coloquiais (a segunda pessoa domina o álbum), em versos curtos e rápidos, que compensam a falta de complexidade com uma abundância de calão, jogos de palavras e muito humor, oscilando entre uma battle rap de índole mais criminosa e hostil, streetwise storytelling e obscenidades lascivas. O tom, portanto, alterna entre a agressividade e a brincadeira. Mas sempre sem esforço, numa voz melada e estilosa, que por vezes é alvo de pitch-shifting à Quasimoto, para acrescentar ainda mais estilo.

E há uma certa intimidade fingida com o ouvinte, como se soubéssemos do que ele está a falar (“Toda a gente sabe que o rei do rap é o Pibs, então não contes a ninguém”), que é divertida e cativante porque nos envolve mais na música e nos meios que evoca. E ainda há espaço para momentos bonitos de melancolia poética (“Queres deitar-te?/Eu nunca vou poder ir a Marte”, que faz lembrar “Eu ofereci-te uma colónia/Já fomos a Santa Apolónia”) ou até mesmo crooning (“Redenção na Igreja dos Grilos”).

Afinal de contas, este Corona que nos fala já não é o mesmo “low-life scumbag” do primeiro álbum, é um homem de negócios, que conhece bem as ruas onde vive, e que depende delas para a sua subsistência. Não vai deitar ao desbarato o que demorou tanto a conquistar.

As músicas são curtas e acessíveis, e como qualquer concept album satírico que se preze. Cimo de Vila está repleto de skits humorísticos, protagonizados pelas personagens sórdidas deste meio, como “Salgado”, suposto realizador de filmes porno (“O Diretor Criativo”), uma meretriz e os seus prospectivos clientes, e Alvy Vegas, pseudónimo de Álvaro Costa, um colega destas lides, impressionado com o sucesso de Corona, que lhe liga duas vezes para o congratular.

O leque de convidados também não deixa margem para dúvidas: um naipe de rappers mafiosos (4400 OG, Kron Silva, Mike el Nite, Fred&Barra, Alferes M), alguns dos quais regressam dos álbuns anteriores para partilhar a sua experiência de vida no sexo e no crime com opiniões muito específicas e verbais sobre como tratar o sexo oposto.

O disco fecha em beleza com “Trindade James”, com o mesmo baixo voluptuoso a que nos habituou, acompanhado por uma flauta exótica de sabor a Médio Oriente, e dois refrões em duelo: uma reiteração de “Mafiando Bairro Adentro”, também com nomes de bairros, que alterna com o refrão de “Dançam no Huambo”, de Kussondulola, que nos abre o apetite para uma sequela.

Cimo de Vila Velvet Cantina não é para todos os gostos. Talvez seja um guilty pleasure. A lascívia das letras poderá afastar os mais pudendos, e algum do calão local poderá perder-se no ouvinte estrangeiro. Também há um apelo nostálgico específico, que quem tenha nascido depois de 89 não vai apanhar (talvez por isso este seja, de facto, um álbum só para adultos, mais que pelo conteúdo licencioso das letras), bem como geográfico, que escapará aos habitantes do Centro-Sul.

Mas tal como o estabelecimento que lhe dá nome promete “proporcionar uns bons momentos de lazer na baixa da Cidade Invicta”, Cimo de Vila Velvet Cantina é uma viagem divertida por ambientes e lugares que têm tanto de sórdido como de sensual e descontraído, altamente recomendável a turistas.

 


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