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Publicado a: 16/06/2017

Conta-nos a tua história, Capicua

Publicado a: 16/06/2017

[TEXTO] Alexandra Oliveira Matos [FOTO] Miguel Refresco

O rap é o estilo musical que maiores certezas (ou ilusões) nos dá de que conhecemos os artistas. Porque os rappers escrevem as suas próprias rimas. Porque tantas vezes essas letras dispensam eufemismos. Porque se preconiza que cada um escreva sobre aquilo que o rodeia, que mais lhe toca, que mais sentido faça para si.

“O meu nome é Ana e sou viciada em música”. Não vos parece, assim de caras, que Capicua é um bom exemplo para sustentar esta ideia? Pegamos aqui em “Ela”, o primeiro single do mais recente projecto em que a rapper portuguesa é também protagonista, Língua Franca. Aqui, mesmo que antes já soubéssemos, Capicua relembra-nos que se chama Ana, Ana Matos Fernandes. Nasceu no Porto e se dúvidas o sotaque nortenho nos deixasse, a dissipação surgiria em “1º Dia”, tema em que a ouvimos rimar que é “do Porto, por inteiro”, logo no segundo verso. Esta música do primeiro álbum da artista, Capicua, dá ainda pistas sobre a sua idade, basta fazer contas. Esse trabalho foi lançado pela Optimus Discos (agora NOS Discos) a 12 de Fevereiro de 2012 e a primeira rima reza “28 e um copo meio cheio, um corpo meio feio”, mas como sabemos que nasceu “num domingo e o parto não foi fácil”, escreve Ana numa faixa toda ela dedicada ao quanto detesta este dia da semana, e que festeja o seu aniversário a 19 de Dezembro (pista de ferramentas que não as palavras) descobrimos que o ano de nascimento é 1982. Confusos? Só queríamos mesmo provar que é possível descobrir alguns factos nas rimas de rappers.

 



Pesquisas à parte, que já vos possam estar a querer fazer digitar o número das emergências, vamos ao que mais importa em Capicua: as palavras. “Nós não somos do século de inventar as palavras. As palavras já foram inventadas. Nós somos do século de inventar outra vez as palavras que já foram inventadas”: Capicua começa assim, recorrendo ao Almada Negreiros de “A invenção do dia claro”, o tal primeiro álbum que já referimos. As palavras da rapper da Invicta começaram a ganhar som em 2006, ainda que antes não faltasse expressão da arte em Capicua que já fazia graffiti desde os 15 anos de idade ou, como revela em “A Última”, a sua “primeira rima foi à porta do infantário” . No EP Syzygy cantava ao lado de Maria e já de M7 e do DJ que até hoje a acompanha, D-One. Desde esta primeira hora não faltaram rimas conscientes em letras como “Patinho feio”.

O ano muda e, se não conhecêssemos o primeiro EP em que participa Capicua, ela não deixaria passar isso em branco. Na faixa “Mau Feitio” do EP com o mesmo título, lançado em 2007 com D-One e Auge, escreve “novo alento o que crio com Syzygy, estamos em REC dedicadas ao boom bap (…), não se repete a história, não é cassete é um álbum de mulheres que põe muita coisa em xeque”. Neste EP as rimas começam a desenhar-se mais audíveis e interventivas, barras que não faltam no primeiro trabalho da rapper a solo que é lançado logo de seguida. “Capicua Goes Preemo mixtape 2008, a primeira parte de uma longa saga”, vaticina logo na “Intro”. Tão longa é a vida de tantas das músicas desta mixtape que continuamos a pedi-las e a ouvi-las nos seus concertos de hoje. Bom exemplo é “Alfazema”, uma música que transpira o estrogénio a que a rapper brinda em todos os momentos e o machismo que não hesita repudiar, “como as tradições sem fim que nos atiram para depois”. Já aqui, sem querermos extrapolar em demasia a criatividade do autor como o fazíamos com Fernando Pessoa e Luís de Camões nas aulas de Português, Capicua diz-nos que é “insegura”, “imperfeita” e que não vai “cumprir com a puta da expectativa”. Não esquecendo, claro, o atrevimento de “Lingerie” que também a acompanha em todos os alinhamentos ou, pelo menos, nos discos pedidos. Uma mixtape em que se ouve bem a caixa de ritmos que são as palavras debitadas pela rapper: “Rabisco, escrevo, risco, rasuro, revisto, insisto. Rascunho e revejo isto, ponho seta e asterisco. Faço pausa, crio lista, ponho em causa, gravo a pista. Se é grossa, não é vista, faço a ronda à minha escrita”. Perfeccionista? Sim, mas não só. E é com Capicua, em 2012, que nos chega a autobiografia da rapper do Porto.

 



Apesar de, claro, ser sempre preferível lembrarmo-nos da ilusão de que se falava na primeira linha deste texto, a verdade é que não raras vezes ao ouvirmos as suas músicas pensamos “é sobre mim?!”. Não vos acontece? “1º dia” é uma excelente amostra. “Da infância feliz” ao ser “dona do meu nariz”, passando pelo “pirosa” e pelo “cor-de-rosa”, não faltam pistas para traçar o perfil da rapper que diz logo aqui que “há muita coisa neste mundo que me intriga”. O quê vamos descobrindo a seguir em “Medo do Medo”, para começar, uma música sem tempo sobre o seu olhar atento e interventivo. Essa é aliás uma característica da artista, militante dos seus ideais e crítica dos erros dos capitais. “Com opinião política, sem organização (…) com a minha palavra, que é arma com efeito local, afinal mudo o mundo aqui primeiro, eu não sou dos partidos, sou dos inteiros. O colectivo é activo, se o indivíduo está desperto e tudo começa no peito. Com a música por perto do verso, é perfeito!”, canta em “A Última”. Porém “somos nós os heróis” e é esse mesmo um dos outros traços, além do sorriso, que não se esquece do perfil de Capicua: o optimismo. Não é por acaso que “Maria Capaz” se tornou mesmo um hino da “guerrilha cor-de-rosa” e inspirou a criação da plataforma Capazes, uma associação que sublinha nos seus objectivos “promover a informação e a sensibilização da sociedade civil para a igualdade de género, defesa dos direitos das mulheres e empoderamento das mesmas”. E nesta pujança toda não faltam as “dúvidas na vida” que ouvimos em “A volta” e nos relembram que “Ana e Capicua viram quase fotocópia”. Pois, tal como acontece a todos “foi um corte, um contratempo comportamental” ou até pode ter sido das “Luas” e a letrista tem “um outro lado como todo o mundo lá no fundo”. Há ainda mais duas canções neste álbum que dão azo ao devaneio de que conhecemos Capicua tão bem quanto a colega de carteira com quem partilhámos sonhos e rezinguisses durante todo aquele ano lectivo: “Casa no Campo” e “Domingo”. Relatos sem pudor de felicidade e ansiedade que dão vontade de perguntar: quem nunca?

Uma nova mixtape não tardou. 2013 trouxe Capicua Goes West com mais rap consciente logo a abrir com “Jugular” e tantas dúvidas e interrogações em “Totem” em que nos confessa que “foi hip hop que me fez gostar de mim, pelo que me tornou”. “Vinho velho” é também uma das canções deste trabalho cheia de indicações para a personalidade da rapper – “Como uma esfinge eu finjo que sou de pedra, que sou dura na queda, mas a perda eu evito” – e já indícios do álbum que se segue, “a ‘Sereia Louca‘ ficou com a lavoura”.

 



O segundo álbum, o anunciado Sereia Louca, surge dois anos depois do primeiro e vem carregado da força de se ser mulher, de “Sereia Louca” a “Mão Pesada”, “Mulher do Cacilheiro”, “Lupa” e até “Líquida” que falando de água não é menos feminina. E se em “Síndrome de Peter Pan” nos fala do seu medo de envelhecer e do seu desejo “de ter sentido e ser eterna como só os artistas são”, “Vayorken” dá-nos todo um álbum de antigas fotografias de uma Ana reguila, gulosa, noctívaga, decidida, divertida e criativa. Terá mudado assim tanto?

Sereia Louca já reforça algumas músicas que são coluna vertebral da carreira de Capicua, com algumas remisturas e confirma o sucesso da letrista que não parou de reunir consenso junto de vários tipos de público, não só o do hip hop. Medusa, o álbum de 2015, é ele mesmo um trabalho de remisturas com apenas quatro novas letras: “Medusa”, “Black Mamba”, “Barulho” e “Egotríptico”.

Em 2016 Capicua confirma-nos o seu “avoir la main verte”, o seu jeito para a jardinagem, e, acrescentamos, para brincar com palavras. Em Mão Verde, um disco para crianças com música de Pedro Geraldes, começa a pôr em prática a pista que nos deixou lá atrás em “Casa no Campo”: “plantar os discos, os livros e quem sabe uma menina”.

Língua Franca foi o trabalho que despoletou este artigo (não que Capicua não merecesse já antes um perfil) e vem colocar a negrito alguns dos traços anteriormente referidos. O olhar sagaz em “(A)tensão” em que volta a falar do “medo” e dos “muros” que se têm erguido pelo mundo, mas em que também deixa o recado de que “entre o medo e a letra” vai “escolher quebrar a regra”. O ser noctívaga de que nos fala em “Vayorken” refere-o em “Modo de Voo”. A curiosidade e inquietude reaparece em “Vivendo com a morte”. O atrevimento de tantos outros sons em “Ideal”. O amor pela música e pelas palavras é transversal, mas reaparece em “Ela”, que é “como um exorcismo e eu cismo em viver dela”.

Ela que é Ana do princípio para o fim e do fim para o princípio. Capicua a “comandante da guerrilha cor-de-rosa”, “a maria capaz”, a “optimista”, a “nortenha”, a de “luas”, a que “não presta” ao domingo, a de “opinião política, sem organização”.

 


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