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Publicado a: 10/12/2016

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[TEXTO] Vasco Completo

O novo álbum de Childish Gambino está cá fora. É o seu terceiro trabalho e, se já achávamos Donald Glover fora da caixa enquanto rapper, este lançamento surpreendeu muitos, certamente. A mudança de sonoridade é óbvia no registo lançado pela Glassnote Records, editora que representa o artista desde 2011.

 



No seu género, Gambino nunca foi o mais convencional, apesar de acompanhar tendências, como pudemos ver em Because the Internet: Tyler, the Creator por um lado, nos instrumentais; Kendrick Lamar por outro, pela capacidade de ser mais arrojado que os seus parceiros de profissão – no que toca ao uso da voz, principalmente. O seu álbum Awaken My Love é uma viragem na sua sonoridade e, como o próprio rapper e cantor disse, este é um “exercise in just feeling and tone”.

Nas primeiras impressões, Gambino parece ser mais ambicioso do que Anderson .Paak, no seu Malibu, por exemplo. A referência ao homem de Yes Lawd! deve-se à proximidade e a recuperação de valores da música negra que não são habituais. Noutro âmbito, Donald está em vantagem em relação a outros rappers porque tem uma voz com bastante qualidade, o que lhe permite experimentar mais, explorar outros limites, até certo ponto.

Mas falemos das canções: a introdução coral cria um excelente ambiente, mas é a entrada do riff da música e a dinâmica crescente até ao mesmo que definem este álbum; é o prelúdio perfeito, mostrando tanto o lado mais agressivo como o mais contemplativo deste registo, tanto a nível instrumental como vocal. “Me and Your Mama” está repleta de Richard Wright nas teclas. Há claramente uma intenção em ir buscar sonoridades ao século passado, e não aparentam ser meras influências. Jimmy Page deve estar neste momento a fazer contas para lançar outro álbum e “pedir emprestado” riffs de guitarra de “Me and Your Mama”…

 



Os coros são, no geral, relevantes para definir a sonoridade deste álbum, e já não é a primeira vez que o constatamos em Gambino (“Outside” em Camp). “Boogieman” é uma das músicas com maior experimentação vocal. O produtor usa coros típicos da música negra dos anos 70 e a composição é muito característica dessa mesma época, muito baseada na construção a partir do riff. E essa é uma das faixas que tem o ambiente mais bem conseguido, a nível de produção, a par de “Terrified” e “Stand Alone”. A própria estrutura de “Zombies” desenvolve-se muito ao estilo dos anos 70, no sentido de dar espaço para os solos sobre a manta criada pelo instrumental de teclados, sintetizadores, baixo e bateria.

Os Deep Purple e o Prince ficariam orgulhos da lição bem estudada por Donald no que toca a voz, como se ouve em “Riot”. As notas agudas relembram um jovem Robert Plant, mas muito mais um Ian Gillan (Deep Purple). Logo de seguida, “Redbone” é um clássico instantâneo. Funciona extremamente bem enquanto canção, pelo ritmo dançante. Muito próximos, ou melhor, cruzados, os revivalismos de Tame Impala (agora com mais identidade no último álbum, Currents) com os de Gambino ao nível do ritmo, da construção melódica dos instrumentos, até do próprio tratamento da voz.

Já se viu que, apesar de não inovar, Donald quer manter-se pouco convencional em relação ao que o rodeia actualmente; em “California” demonstra uma instrumentação certeira e um uso da voz, de certa maneira, diferente – Kendrick Lamar desbloqueou tantos artistas com To Pimp a Butterfly… No entanto, é óbvio que o cantor/rapper/actor é  forte e tem uma capacidade incrível de cativar faixas. “Terrified” e este álbum são a prova viva do mesmo. Adiante: “Baby Boy”, mais uma vez, vai à base dum género marcante da época que quer tratar: ritmo de blues marcadíssimo pelo baixo e pela bateria, a voz “abluesada”,… todos os condimentos expressam a reivindicação por uma sensação de homenagem aos grandes elementos da canção negra. “The Night Me and Your Mama Met” é um excelente tema e uma ode clara à “Maggot Brain” dos Funkadelic – o próprio timbre da guitarra está muito semelhante.

Awaken, My Love não é, apesar de tudo, um álbum desta geração. Muita gente se pode rever no que é feito neste álbum, e as pessoas vão-se identificar, mas não por algo que é contemporâneo. É inteligente a forma como é realizada a modernização da instrumentação e produção à la rock progressivo / rock clássico, funk, r&b ou mesmo soul dos anos 70. Tanto a instrumentação como a voz. Há influências do funk negro da mesma década, de Prince, dos Funkadelic, dos Zeppelin, dos Isley Brothers. Mas, vendo bem, por muito interessante que o álbum seja, e por muito conteúdo que tenha, Gambino não criou nada de novo. Reviu muitas influências, criou um álbum muito bom, com excelentes faixas. Mas o que fez foi recordar-nos de muita coisa claramente datada, no sentido em que representam claramente uma época passada em termos de história da música. Apesar disso, a verdade é que, no fim de contas, ninguém está a fazer o que Gambino está a fazer e ele fez aquilo a que já nos tem vindo a habituar: ser diferente de todos os seus contemporâneos.

E aqui não podemos colocá-lo numa caixa hip-hop. Não que o mesmo seja um campo fechado, e não que o artista não se tenha apresentado inicialmente como rapper, mas este não é um álbum hip-hop. Apesar de tudo, o que Donald foi buscar, musicalmente falado, afasta-se do que é o hip-hop, numa primeira instância.

Para terminar, não me parece rebuscado fazer um paralelo com o percurso de Kendrick Lamar, que, no seu terceiro álbum, com um estatuto mais estabelecido (tal como Gambino agora), já tendo interesse dum público um pouco mais vasto, foi capaz de mudar substancialmente a sua sonoridade ao nível da produção e procurou redescobrir as suas influências. Se se realizar uma retrospectiva, parece-me que Kendrick teve um álbum bastante melhor conseguido, talvez por parecer muito mais único. Mas isto acaba por ser apenas um paralelo, não uma comparação cimentada nas qualidades musicais dos dois artistas, ambos talentosos.

Vai ser um álbum certamente bem recebido: basta vermos as primeiras reacções nas redes sociais e considerarmos a larga comunidade de pessoas que se vai interessando pela música de Donald Glover. Conhecendo a sua capacidade, como já foi referido, de escrever canções que encaixam no ouvido e têm tendência para não nos deixarem enquanto não estiverem totalmente instaladas no nosso cérebro, Childish Gambino continua a trilhar um caminho peculiar e sempre diferente.

 


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