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Publicado a: 11/11/2017

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[TEXTO] Diogo Pereira 

Burial tem-nos habituado ao lançamento regular de EPs de curta duração desde o seu último álbum digno desse nome, Untrue, de 2007. Este ano está a ser o seu mais produtivo: depois do ambiental e etéreo Subtemple / Beachfires e do hipnotizante Rodent, Burial brinda-nos agora com este novo Pre Dawn / Indoors, pequeno 12’’ de duas faixas lançado pela Nonplus, editora londrina de drum’n’bass. Este é o seu terceiro EP este ano, e o primeiro fora da sua casa habitual desde Temple Sleeper de 2015.

O que o produtor londrino nos oferece desta vez é música de rave, mais acessível e imediata, e mais próxima de Temple Sleeper e Rodent do que o ambientalismo experimental de Young Death / Nightmarket e Subtemple / Beachfires, com algo reminiscente da clássica electrónica britânica dos 90s, género e era que sempre o fascinaram, como confessou numa das raras entrevistas que deu a Mark Fisher, jornalista da Wire. A começar pelos ritmos, que desta vez estão sem dúvida acelerados, algures entre o techno mais hardcore e o 2-step a que nos habituou.

O EP abre com uma série de efeitos sonoros cinematográficos, semelhantes aos que abrem “Young Death” e “Subtemple”, elementos familiares do universo Burial: um cadeado a ser destrancado, um isqueiro a ser aceso, um drone agourento e um vento fortíssimo, evocando imagens pós-apocalípticas do último homem à face da Terra, que acaba de passar um dia inteiro a enfrentar as forças da Natureza, e agora encontra abrigo da tempestade numa cabana abandonada, saboreando o último cigarro antes do fim do mundo.

Aliás, a música de Burial sempre foi cinematográfica e profunda e indelevelmente visual, mas desta vez o espaço evocado (tirando esta pequena introdução não-musical) é o de um grande armazém nos subúrbios de Londres, daqueles que alojam uma rave num sábado à noite para jovens delinquentes sedentos de violência, êxtase e alienação.

Este novo Burial é sem dúvida dançável, e a sonoridade lo-fi afilia-o a Temple Sleeper, outra incursão fora da Hyperdub. É também mais despido e cru, sem as habituais vozes r&b.

“Pre Dawn” faz jus ao seu nome abrindo com o som do abrir da porta de uma cabana isolada no meio do nada, deixando entrar o vento inclemente de uma enorme tempestade. A princípio, pensamos que estamos numa das faixas ambient de Burial. Mas depressa entram vozes xamânicas de uma qualquer tribo indígena a uivar aos céus, e os ritmos de trance, do tipo que se ouve na rave da cena de abertura de Blade. No entanto, perto dos 6’35’’, a batida desaparece para dar lugar a uma passagem de cordas sintetizadas épicas à Vangelis enquanto uma voz nos sussurra “Take me to the dream world”.

“Indoors”, a mais tribal das duas faixas, começa como clássico Burial: uma delicada melodia de piano, e uma voz feminina angelical à Enya, tudo envolto em estática. No entanto, a partir dos 0’43’’, o loop daquilo que parece a prostituta vietnamita de Full Metal Jacket alimentada a hélio penetra-nos exasperantemente os ouvidos, a raiar o insuportável (dizendo “Loverboy all night long”, uma variação de “Me so horny, me love you long time”), acompanhado por um kick insistente que anuncia a vinda de algo violento. Tudo isto com o silvo do vinil em fundo, e efeitos sonoros de origem obscura, aos quais se junta uma voz que parece samplada de Xtal, que nos faz sentir no meio de uma rave, completamente às escuras, atormentado por uma voz fantasmagórica, tentando perceber de onde ela vem, até perceber que ela vem da nossa própria cabeça. A batida entra, desta vez num techno de uma agressividade que se aproxima do hardcore.

Ambas as faixas começam por nos enganar ao que vêm, estendendo-nos um tapete celestial de melodias delicadas de piano e field recordings, e então apanham-nos de surpresa, sacam-nos o tapete debaixo dos pés e atiram-nos para uma rave dentro de um armazém nos subúrbios de Londres, no meio de uma multidão a suar.

Não se pode dizer que este novo Burial abra o apetite para um novo álbum, ou se trate apenas de mais uma das suas experiências em formato EP, porque é demasiado curto para convidar esse tipo de especulações.

Mas podemos afiançar que William Bevan continua fiel a si próprio, à sua visão pessoal da electrónica, a fazer música de dança que não é bem música de dança, por ser mais sombria, estranha e peculiar. O que se nota em ambas as faixas, negras e envoltas em estática e vozes do outro mundo, como é apanágio da sua estética.

Como sempre, e graças ao seu grande aliado, o reverb, Burial volta a criar aqui espaços enormes, vazios e cheios de silêncio, os quais preenche com elementos que parecem ecos de vozes que já não estão lá, libertando a música em vez de a oprimir. Esse espaço, aqui, é o armazém de uma rave, amplo, mas também solitário, evocando a solidão citadina tão característica da sua obra.

Embora não tenha a euforia e o peso emocional de Rival Dealer, continua a haver emoções fortes evocadas em ambas as faixas, desde a paranóia nos momentos mais intensos, à melancolia e solidão nos mais calmos.

E temos os mesmos ingredientes de sempre: o silvo do vinil, o calor analógico do ruído branco, as batidas 2-step, as texturas ambientais, as vozes etéreas e angelicais afogadas em efeitos, e moldadas em melodias que carregam faixas inteiras, os diálogos misteriosos de filmes obscuros, o som de chuva a cair, o imenso reverb.

Não obstante, alguns marcos ficaram de fora. Desta vez não temos os loops de cordas de bandas sonoras de videojogos de acção e os refrões r&b cortados aos pedaços e altamente processados.

Como disse Paul Simpson na sua crítica a Young Death / Nightmarket, algumas faixas de Burial parecem sequências de sonhos, enquanto outras parecem faixas de dança. “Pre Dawn” e “Indoors” são sobretudo a segunda, com breves momentos em que o cinema e o sonho surgem, como dando alívio a alguém que emerge das profundezas de um lago para respirar. São faixas de rave, alimentadas por MDMA e sonhos.

Pre Dawn / Indoors tem os mesmos ingredientes da estética Burial, sem os experimentalismos de EPs anteriores. O produtor britânico não investiu tanto como em Rival Dealer ou arriscou tanto como em Young Death / Nightmarket. Não está a navegar em território novo, mas a trazer os seus fiéis seguidores de volta ao local de culto.

No fundo, voltamos ao mesmo. Trata-se de atmosfera, e nada mais.

 


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