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Publicado a: 22/01/2017

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[TEXTO] Rui Miguel Abreu 

Brian Eno, felizmente, não dá sinais de querer abrandar e depois de lançar The Ship o ano passado eis que volta à carga com um trabalho conceptual e ambiental.  A julgar pela sua intensa actividade no Twitter, plataforma com que vai dando oportuna conta do seu arquivo de recortes de imprensa e que usa para certeiras recomendações musicais, este tem sido um criativo período de reavaliação do passado com o produtor a apontar para importantes peças jornalísticas do seu passado e também a revisitar influências com posts que recomendam a audição de material variado de Miles Davis a Kraftwerk.

E Reflection pode ser visto sob essa luz de reorganização do passado, como o retomar das suas ideias sobre a música ambiental numa peça densa que se estende por quase uma hora de duração. Eno, o maverick de boas de penas e eyeliner dos tempos dos Roxy Music, quando injectava tremores electrónicos na fórmula glam, transformou-se, quase cinco décadas depois, num pensador cujos interesses se alargam da filosofia à pop, das artes plásticas à inteligência artificial. Essa irrequietude talvez seja, e paradoxalmente, o que alimenta um trabalho como Reflection, uma obra desenhada (e esta é a palavra certa: na apresentação deste trabalho e da sua componente virtual por via de uma aplicação informática falava-se de calculados algoritmos…) para sustentar a procura da quietude, da imersão. Da reflexão. Há por aqui uma novidade, talvez: Brian Eno pode ter inventado a música ambiental, mas a ideia de uma certa espiritualidade normalmente associada à corrente new age nunca lhe foi propriamente imputada. Mas agora, talvez se possa pensar em new age enquanto se mergulha no lago límpido que é Reflection.

Talvez haja, portanto, algum desse lastro mais espiritual por aqui, na forma tranquila como a peça parece desenvolver-se ao longo de 54 minutos de frequências cuidadosamente organizadas no espaço, como uma escultura de sons de cristal que parece poder desvanecer-se a qualquer momento, de tão frágil. No Guardian, Kitty Empire comparou a lenta progressão de elementos sonoros em Reflections ao acto de ver a tinta a secar: “mas tinta a secar numa pintura de Mark Rothko”. Rothko é uma escolha curiosa: as suas formas contrastantes e geométricas, garantia o próprio, tinham um fundo profundamente emocional e espiritual. Talvez Eno se aproxime agora desse estado, mas a sua abordagem será menos emocional do que cerebral: “É como a jardinagem: plantam-se as sementes e depois cuida-se das plantas até se obter o jardim que se deseja”, explicou o produtor sobre a componente generativa da sua peça exposta na aplicação que resultou da encomenda da Apple TV: uma série de regras que consoante a hora do dia gerem os algoritmos que vão combinando as diversas componentes da sua peça. Tinta a secar, portanto, mas numa tela de Mondrian, então, com as suas formas geométricas mais precisas, estudos de cor e luz que pareciam resolver a natureza numa harmonia quase matemática em busca da energia que sustenta o universo. Será mais por aí que anda Eno.

A ideia de Reflections passa por pegar numa sugestão melódica desenhada no que soa como um xilofone (provavelmente um preset modificado do DX7 da Yamaha) para muito lentamente desenhar uma paisagem aural profundamente abstracta, feita de pequenos pontos de luz e sombra, com cada frequência a soar cuidadosamente esculpida, como se o espaço que cada som sugere fosse tão importante como a sua própria cor e forma: o reverb de cada nota, a forma como se prolonga, qual circulo na superfície tranquila de um lago depois da queda de uma pedra, é crucial aqui. A intenção é, claro, o convite à imersão, algo que os nossos ouvidos não recusam. E o resultado final é o de um exercício de meditação que preenche o pensamento de tranquilas imagens. Muito new age, de facto. Mas Eno não se limita a querer elevar-nos a um estado de superior tranquilidade: mas a “gramática generativa” que Eno pode ter adaptado das ideias de Noam Chomsky sobre a linguagem para a música também levanta questões sobre o papel do compositor. No livro Visual Music que acompanhou a obra visual 77 Million Paintings, Roy Ascott garantia que Eno, seu aluno, foi o primeiro a compreender “que a cibernética é filosofia e a filosofia é cibernética”. Eno quer, enfim, desligar-se. E deixar-nos apenas as suas… reflexões.

 


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