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Publicado a: 20/06/2017

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[TEXTO] Nuno Afonso

Raros são os lançamentos discográficos que desde logo se poderão apelidar de históricos. Por norma, é o tempo que lhe confere a aura e quase sempre a um disco de estreia forte segue-se uma carreira. A dupla Beatbombers fez o oposto. Stereossauro e DJ Ride há muito que descartam apresentações de maior, formando toda uma nova geração e conquistando prémios internacionais de turntablism e scratch. Para trás ficaram as mixtapes – em que se destaca a elementar “Let’s Get Lost” – e a curiosidade mesclada de sonho de um dia testemunhar aquele que seria oficialmente o primeiro álbum desta força criativa.

Talvez mais emblemático do que qualquer outro seu feito, a remistura do clássico “Verdes Anos” de Carlos Paredes, mantém-se ainda hoje como um monumento nas fronteiras do hip hop nacional. Tributo ou reinvenção, é certo que a audácia continua a abrir portas a muitos ouvidos curiosos.

 



Ambos com auspiciosos percursos a solo, onde não têm faltado diversas apresentações e inúmeros aplausos, por esta altura imaginar-se-ia já abstracta esta reunião em estúdio – até que efectivamente a ideia começa a ganhar forma. Agora, num fervilhante mês de Junho de 2017, estão aí os catorze temas que compõem o álbum dos Beatbombers. Acabam por ser, em abono da verdade, catorze cartadas robustas muito além do que representam em si. Trazem uma saudável plasticidade de sons, acompanhada por uma mão cheia de novos (e menos novos) acompanhantes de luxo. Sem grandes pruridos ou surpresas, trazem os melhores MCs deste tempo e neste espaço específico plantado junto ao Atlântico. Um gesto de extensão, de partilha, de convergência de mentes alinhadas na mesma frequência.

Em certa medida, percorrer Beatbombers LP é sinónimo de tomar pulso ao estado actual da produção musical nacional. Com uma noção de hip hop à cabeça, depressa se entende que ultrapassa essa etiqueta; o que aqui se encontra presente também é electrónica mestiça, camuflada de drum’n’bass, dub digital ou trap em combustão lenta. Por outras palavras, estamos diante de um disco sofisticado, sem medos ou preconceitos, capaz de ser bem mais do que se fazia inicialmente imaginar. Tecnicamente cuidado e inteligentemente conceptualizado, esta é igualmente uma obra que faz questionar e olhar para o futuro, sem contudo colocar em causa toda a efusão e divertimento que obviamente a estrutura. Uma e outra face não são exactamente incompatíveis e esse é um dos pontos fortes dos Beatbombers.

A progressão presente na introdução do disco trata de limpar caminho ao que se segue, entre ritmos alienantes e pontuações de scratch, uma voz atira para o ar: “this is not just another one, do you know what I mean?“. Uma progressão rítmica que explode num possível cenário cinematográfico nos minutos posteriores, em “Wind It Up”, com as participações de D-Styles e DJ Kentaro (e há-que dizer que este instrumental não destoaria num disco de Run The Jewels).

Porém, surpreendente é o que segue após a rebentação desse brilho intenso. Slow J é uma daquelas figuras que ao longo do tempo nos tem oferecido suficientes razões para nele depositar as melhores expectativas. Pela frescura que traz, pela linguagem diversa que recorre. Ao lado dos Beatbombers, edificou simplesmente uma brilhante canção. Simples, forte e com um enorme potencial de chegar a outros públicos e a outros patamares. “Puristas” é um blues real num tempo “em que a batida era uma fé e eu rezava dia e noite por viver”; das palavras faz-se uma composição inspiradíssima, fortemente melódica, sensual e perigosa, quase em doses semelhantes.

 



O dancefloor londrino é evocado em “The Professional”, num turbilhão bass de luxo trazendo à memória nomes como Lone, Skream ou Digital Mystikz embora encontrando um local cuja identificação geográfica depressa se desvanece para algo maior. De resto, a agilidade com que saímos de uma paragem e entramos noutra, sem correntes de frio ou calor, é notável. E a paragem que se segue é um “três em um”, uma autêntica trindade rap. O negrume exemplar de “Headliner” logo abraça a presença de Fuse aka Inspector Mórbido em “Beatbombers Airlines”, peça de um dinamismo e toxidade como há demasiado tempo não se escutava por cá. Porém, a jóia desta coroa é “What the F##k”. Título alusivo às injustiças que todos conhecemos, que os media tanto buscam explorar, mas cujas soluções ainda esperam por chegar. Um retrato amargamente pitoresco, pleno de um sentimento de velha guarda de quem já muito viu, ouviu e viveu, mas continua afinal a recolher-se à margem: “E hoje sou um gajo social, mas vivo num bairro social”, ecoa como cântico irónico ao longo da faixa.

Com “Pursuit”, Razat é convocado para a rave mais intensa do álbum, recuperando alguma glória do dubstep antes do atentado que Skrillex causou ao género. Salve-se sempre o bom gosto e a vontade de inovar. Ora, num conjunto tão ecléctico e unido pela música urbana de vários quadrantes, seria de esperar que mais cedo ou mais tarde o dancehall fosse local de pousio provável. De facto, “Takin Over” procura fazer jus a esse exercício num fluído de pulsação jamaicana, reverb e vocalizações assertivas a cargo da dupla luso-caboverdiana Supa Squad. Uma vez mais, o resultado é inatacável.

É já na recta final que, pela primeira vez, os ares de “Verdes Anos” se instalam. Não que tal aproximação alguma vez se tenha assumido como obrigatória ou até necessária, mas dada a dimensão que a reinterpretação teve no passado, uma movimentação assim seria bem vinda. É assim que se apresenta “Rising”, peça instrumental em que os samples de outrora saem de cena para entrar a guitarra portuguesa cristalina de Ricardo Gordo. E algo nos diz que o produtor Clams Casino teria uma palavra a dizer perante isto.

 



“20 Primaveras” urge urgência como mais nenhuma outra faixa no disco. Sonoramente onírico e balsâmico, o contraste com a lírica é chocante – e só assim poderia ser. Uma história de vida que não deu certo, contada da melhor forma por Maze, lado a lado com Holly, o outro convidado de honra. “Real Shit” surge com o simbolismo da faixa número 13, esse número eternizado de maldito, para montar uma suada celebração drum’n’ bass/ jungle (soltando um saudosismo dos 90s). Para o final, “O que é um DJ?” volta a colocar a big beat na ordem do dia, entre samples, um baixo galopante e uma questão maliciosa.

Contas feitas, este é definitivamente um dos lançamentos do ano por cá. Mais que um disco de dois titãs, Beatbombers LP é uma verdadeira embaixada lusa, consciente do seu espaço e do seu tempo. Tal como se suspeitava, existe muito caminho a seguir por aqui (directa ou indirectamente), mais que suficiente para explorações futuras. Numa só palavra: calibre.

 


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