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Publicado a: 21/11/2015

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arca_mutant_review

[TEXTO] Rui Miguel Abreu

 

Permitam-me que comece esta crítica na primeira pessoa e que vos conte um par de episódios: o ano passado, enquanto me encontrava no hospital, aconteceu de repente perceber que os enfermeiros ao meu redor se alarmaram porque as máquinas que monitorizavam os meus batimentos cardíacos se comportaram como se fossem um contador de BPMs e se de repente o DJ de serviço tivesse decidido passar de Massive Attack para Photek; essa aceleração, que na verdade mais parecia uma rejeição por parte do meu músculo cardíaco do 4/4 do house em favor de uma polirritmia qualquer dos Art Ensemble of Chicago a meio de uma excursão free ao centro do caos, voltou a fazer-se sentir recentemente antes de um concerto de Allen Halloween… O coração não demorou a reencontrar o seu groove natural, mas ambos os episódios me fizeram perceber que por vezes os meus pensamentos aceleram em múltiplas direcções ao mesmo tempo e nessas ocasiões o meu “metrónomo” decide tentar acompanhar as sinapses e descontrola-se um pouco. Ao ouvir o novo disco de Arca, fico com a sensação que o sequenciador usado pelo produtor venezuelano deve, de alguma forma, ter estado ligado ao mesmo monitor cardíaco que no hospital documentou a minha rejeição de um groove quadrado e a minha deriva por terrenos mais livres. Se o monitor cardíaco viesse equipado com MIDI e fosse possível ligá-lo a um MacBook a correr o Live, o resultado, naquele momento, seria Mutant, o novo disco de Arca.

 


 

 


 

Já por aqui usei a palavra caos. A teoria do caos indica que uma borboleta pode bater as asas em Pequim e provocar um terramoto do outro lado do planeta. Terá sido algo de semelhante a projectar a carreira de Alejandro Ghersi: em 2012, um par de faixas partilhadas no SoundCloud colocaram em marcha uma série de acontecimentos que o conduziram a este momento presente e à edição do seu segundo álbum na Mute, Mutant, que sucede a Xen, do ano passado. Pelo meio, Arca foi recrutado para trabalhar em Yeezus de Kanye West, traduziu na perfeição o R&B… hum… mutante de FKA twigs, subiu de divisão para trabalhar com a abelha rainha Björk e continuou a usar o SoundCloud para enviar pequenos abalos sísmicos para o resto do planeta com novos temas que soavam a… hum… a arritmias cardíacas, a pequenas explosões de supernovas, a música que traduz em som a expansão orgânica de um qualquer fungo em versão acelerada: de modo imprevisível, mas determinado, como se cada som que programa seguisse um plano similar à célula que se duplica levando à expansão de um qualquer organismo. Mutante, claro está.



Mutant estende-se por 20 faixas, mas como qualquer ecossistema, não se percebe muito bem onde termina um tema e começa o seguinte, mas é clara a interligação de todas as peça, que existem numa estranha harmonia. Os sons são cristalinos, puramente digitais, e nesse sentido a música de Arca traduz um mundo novo, um pouco como James Ferraro e as suas fantasias de néon corporativo ou Daniel Lopatin e as suas projecções de estados mentais alterados. Mas a música de Arca não é angular ou cerebral, antes profundamente física e orgânica, assimétrica, imprevisível e caótica. E sensual. Como qualquer sistema natural, vivo e vibrante. E, nesse sentido, há qualquer coisa de profundamente poético logo abaixo da superfície cromada dos zeros e uns digitais que se organizam para compor estes sons. Pode entender-se o título deste novo álbum de Arca nesse sentido: toda a vida é por definição mutante, pois está sempre a transformar-se – o novo que dá lugar a velho, o velho que dá lugar a cinza, a cinza que alimenta o que renasce e por aí adiante, num eterno devir de transformações permanentes e constantes.

 


 

 


Como nos tais momentos em que as sinapses parecem querer correr para todas as direcções da rosa dos ventos com o músculo cardíaco a tentar acompanhá-las desmultiplicando os seus pulsares, também Mutant faz música da mente irrequieta de Arca, quebrando regras e inventando novos sistemas, desrespeitando dogmas fixos de organização tonal, rítmica e harmónica para forçar o que é digital e matemático a soar natural, vivo, urgente, sensual e quente. Como um corpo. Mas um corpo novo, diferente, ligeiramente perigoso, misterioso. Mutante.

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